Carta à Terra

Raniere Sabará

Querida Terra,

Escrevo-lhe essa carta, pois, me preocupa como a vi hoje.

Hoje acordei com desejo de viver. Sabe quando o corpo pulsa sem balbuciar os lábios, expelindo perfeita harmonia? Pois então, foi o sentimento que me antecedeu ao acordar.
O céu acordou tomado pelo azul. Parecia a imensidão dos oceanos nas estações de verão. As cores estavam mais vivas. O ar estava mais puro mesmo com tantos múrmuros bubônicos ouvidos por trás das janelas.

Em poucas horas, caligrafei o mapa mundi no peito e me vesti de cada personalidade que havia em mim. Pelo quarto, vinha cantarolando, girando, girando e girando, sem sair do lugar. Batuco, componho, canto, recanto no meu concavo.

Terra, hoje acordei com desejo de desbravar. “Ser selvagem”, como você me ensinou. Naveguei nos escritos mais profundos de Van gogh, caminhei pela Serra da casa de pedra até que no topo encontrei você.

Parecia algo incomum, sabe.

Sei que as coisas não andam fáceis nessa missão que te deram, Terra. Quando a vi, você estava tão mirrada que “nem o passado te ambicionava” como diz Maria Bethânia. Seus pelos haviam caído e seu olhar estava profundo, apático.

O que fizeram com você, Terra?

Pelo seu corpo, só havia manchas cinzentas, como se alguém a tivesse atirado em fogo. Nesse mesmo corpo, havia muito suor, como um bule pronto para ebulir.
O que fizeram com você, Terra?

Não havia água em sua casa. O chão estava batido, havia trincas como se em algum momento fosse afundar para o seu centro. Faltava comida para seus irmãos. Alguns deles com doenças das mais variadas, advindas das epidêmicas transformações de sua comunidade.

O que fizeram com você, Terra?

Até a bicharada que alegrava sua casa, não as encontrei quando cheguei. Estavam trancafiados em gaiolas pronto para o abate. Sem contar em outros que vi estirados no chão, mortos por uma tal de “Vale do Rio doce” que de doce ao meu ver não tem nada. Ela me disse que vocês eram “amigas das antigas” e as mortes foram com seu aval.

O que fizeram com você, Terra?

Os dias já não estão sendo mais os mesmos. As canções que você tocava ao acordar, já não são mais ouvidas. Na sua casa havia barricadas, lamas que escorriam no pé da escada. Te trocaram por um metal, foi isso?

O que fizeram com você, Terra?

Me diz. Embora o mundo esteja sendo desleal com você, eu ainda a consigo ouvir.

Um grande abraço,
R.

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