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Presentes que me dou: A música (3)

Rosangela Maluf

O dia é longo. Ainda bem, assim poderei fazer tudo que quero. Hoje é segunda-feira, dia de dar uma ajeitada na casa. A faxineira que antes vinha duas vezes por semana (no apartamento enorme), agora vem de quinze em quinze dias (no apartamento pequenino). Nos outros dias me organizo para deixar tudo do jeito que eu gosto, muito arrumado, muito limpo, muito cheiroso: me sinto bem assim! Alguns dizem que é neurose, mas cada um na sua vibe!

Antes de começar o trabalho do dia procuro pelo Spotify. Tenho várias seleções dos meus compositores preferidos. Quase todas as sinfonias de Vivaldi. Muitas de Bach e muitas de Beethoven também. São eles os que mais me inspiram. Ouço-os sempre. Quase todas as noites. Quando chove, ouço o dia inteiro; acho que combina com livro e café. Aí, me dou folga e não faço mais nada.

Quando eu tinha uns sete, oito anos de idade, descobri que meu pai ouvia, no rádio, músicas que não eram cantadas. Não havia nelas nenhuma palavra. Eram instrumentos variados, alguns deles eu não conhecia e nem conseguia distingui-los. Era um som muito diferente do que a gente ouvia o dia inteiro, seguindo o gosto musical de Naná que não desligava o rádio pra nada. Foi assim, perguntando “cadê as palavras” que fui me informando pouco a pouco sobre a música clássica, também chamada de erudita e que viria ser uma grande paixão em minha vida. 

Uma década depois fui morar em BH. Havia passado no vestibular e diante da nova vida universitária, conheci o Palácio das Artes de onde nunca mais saí. Lá admirei as primeiras exposições de pintura e fotografia. Assisti a peças memoráveis com atores famosos. Foi lá que assisti a primeira ópera que vi na minha vida. Também cantores internacionais, grandes figuras conhecidas no mundo inteiro. E, principalmente, pude deliciar-me com a música sem palavras que eu ouvira muito tempo atrás, no rádio de cabeceira do meu pai.

Hoje, minhas manhãs não são iguais. 

A pandemia tudo mudou, desorganizou, assustou, ressignificou!

Sempre tenho o que fazer, sempre. Mesmo durante esse momento, com um tempo elasticamente aumentado, tenho horários para os meus cursos de artes, as visitas aos museus, hora para cozinhar ainda que só pra mim. Fazer meu bolo de laranja, ler muito, escrever muito, meditar, sempre tendo a música clássica como fundo. É um hábito antigo que carrego até hoje. Acordo com música, durmo com música. Só no meio da madrugada é que desligo o celular, invariavelmente sintonizado em alguma emissora de rádio, no Youtube ou no Spotify .

Entretanto, depois que o sol se esconde minha preferência musical muda completamente. Pego o violão e o caderninho com MPB & sucessos antigos. Adoro relembrar os bons tempos ainda que ouse tocar “Meu Abrigo”, do trio Melim. Altar particular, da Maria Gadu, é outra canção que adoro. Há umas poucas e raras que ainda (e a duras penas) conservam a qualidade musical a que estávamos acostumados, nos bons tempos. Mas são raríssimas. 

Pareço uma velhinha falando, mas a deplorável qualidade da grande maioria das canções atuais não nos permite sequer ouvi-las por inteiro. Os erros de português se acumulam. As rimas são de uma pobreza espartana. Métrica, o que é isso? E quando são vistas na TV, o figurino é sempre de inquestionável mau gosto. O vocabulário é visivelmente descuidado. A postura, dependendo do artista, é absolutamente ridícula, espalhafatosa, inadequada. Sem falar no linguajar pra lá de danado…

Do sertanejo antigo eu gostava. Letras simples, escritas com cuidado, rimas e métrica com um mínimo de decência musical. Acordes bem feitos, muito diferentes do que se ouve hoje. Saudosismo? Também. A verdade é que, reclamando ou não, sem música – definitivamente – não sobrevivo. Da alegria de cantar ao prazer de apreciar uma sinfonia orquestrada, a presença da música em minha vida é e será sempre uma dádiva.  

Poucas coisas me dão prazer maior do que, em uma terçafeira, assistir aos concertos gratuitos, na hora do almoço, no Palácio das Artes. Nas noites de quinta feira, sessões absolutamente mágicas na Sala Minas Gerais. Aos domingos, pela manhã é sempre possível assistir a Profa. Berenice Menegale, na Fundação de Educação Artística ou ainda pegar um ou outro Concerto no Parque Municipal, espaço lindo e mágico. Tudo ao ar livre. Verde por todo lado. Notas musicais vagando pelo ar. Crianças quietinhas ouvindo, como eu ouvi um dia, aquelas músicas sem palavras.

Enche-se de alegria o meu coração ao ouvir uma sinfônica que eu aprecie, regida por um maestro que já tenha visto pessoalmente ou pelo Youtube e da qual eu já conheça os movimentos da peça em execução. É uma meditação sonora. Nada se passa no meu pensamento a não ser a entrada de cada nota. Em minha’alma ecoa o som de cada instrumento: os de corda, os de sopro, a percussão. Cada um desempenhando seu papel naquele momento, despertando em mim os melhores sentimentos e as mais profundas emoções.

Sou grata pelas sensações vividas, pelas ondas de puro encantamento que me invadem a cada compasso. Muitas emoções me são despertadas, numa avalanche. Sou grata pelo calor que me invade a alma. Sinto uma vontade imensa de chorar ou de sorrir, nem sei muito bem. E vontade também de dançar. Fecho os olhos e vou girando, girando como bailarina, na pontinha dos pés. 

Só lembranças, muitas lembranças, sweet memories.

Obviamente nada mais é assim desde que a pandemia se instalou entre nós e só nos resta esperar… esperar… esperar!

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A série “Presentes que me dou” contém dez crônicas, todas elas vivenciadas em tempos de pandemia. Todas as situações rotineiras adquiriram novo significado em tempos de total isolamento social. Daí esta série, publicada aos domingos pelo Blog Mirante, do jornal Estado de Minas. Escritas por mim, as crônicas são um convite à leitura da nossa realidade, pós/durante a COVID!

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