O prédio inteiro está em silêncio. Aos domingos tudo é ainda mais calmo. A ausência de vozes, a quietude. Nenhum carro sai da garagem. Não há gritos de crianças indo para o clube, nem mães clamando “cuidado”. O domingo é de sol, mas estamos todos pagando o preço do isolamento social imposto pela pandemia. Quietos em casa, estamos todos. Cuidando de nós e cuidando do outro também, ainda que o preço a pagar seja alto demais. E vai piorando a cada dia que passa. Mais mortes, mais contaminados. As aglomerações continuam. Difícil entender o que se passa na cabeça desta gente!
Um suspiro e lá vou eu. Ainda é cedo. Acendo a luz da cozinha. Na medida certa, coloco a água pra ferver. Enquanto espero, separo o coadorzinho de flanela. Nele coloco uma pequena colher de pó de café. Não gosto de café forte. A xícara de cerâmica pintada à mão, foi presente do meu filho. Sorrio pensando nele. Respiro profundamente e adoço a vida com duas colherinhas de mascavo.
Separo as torradas, três. Retiro o caneco onde ferve a água e vou, lentamente, despejando-a no coador. Pequenino. Conta certa para uma boa dose matinal de café. Sem nenhuma pressa a xícara vai se enchendo, aos poucos. O cheiro é sempre bom, mas com total atenção no aroma e nas lembranças que me despertam, o inusitado torna-se emocionante.
Uma simples essência me leva a tantas lembranças. Uma manhã de inverno. Uma tarde chuvosa. Encontro de amigas. Em casa, enquanto leio um bom livro. Sabores diversos em diversos países, cada um com suas características tão especiais e marcantes. Todo mundo toma café. O mundo inteiro (ou quase) bebe café. Inúmeras variações, mas o cheiro é quase sempre o mesmo. E hoje quero explorar, como nunca fiz antes, o prazer do café que tomo todos os dias, sem pensar em outra coisa.
Como a atenção a um simples cheiro pode ser capaz de tanto! Agrada-me a sensação de reviver todas estas lembranças. Continuo empenhada em colocar-me no aqui/agora, em tudo que eu fizer. Quero colocar meu pensamento, minha energia e meu coração em cada etapa da rotina do meu dia a dia. Desafio-me a conseguir parar a mente. Impedir que outras coisas me preencham sem que eu lhes permita a intromissão. Totalmente dona dos meus sentimentos, dirigindo o meu pensar para aquilo que me faz bem. Tudo que me enche de alegria. A busca da felicidade nas pequenas coisas, nas pequeninas coisas, na mesmice do dia a dia. É possível sim.
Três torradas: a primeira apenas com manteiga, muita! Na segunda espalho, vagarosamente, uma camada de requeijão cremoso e outra camada, ainda mais generosa, de geleia de laranja (com casca) que eu mesma faço e adoro. A terceira com fatias fininhas de queijo. Coloco 10 segundos no micro-ondas, tempo suficiente pra derreter aquela maravilha. Aprecio a textura. A temperatura. O sabor da torrada e a “crocância” na mordida. (Sorrio pensando no outro filho que adora esta palavra). O sabor da manteiga derretendo na boca. Mastigação lenta, mistura caprichada. Bela combinação, o salgadinho do requeijão com o doce-amargo da geleia. O calor do queijo derretido, pastoso, delicioso, escorregando com calma.
Inspiro profundamente e expiro contando até seis. Sentimentos de afeto e ternura me invadem. Gratidão por tudo: pelo silêncio deste dia, por ter em mim o que preciso. Sou terra, sou água, ar, fogo e luz. Tenho tudo que me é essencial, importante, necessário, o básico para minha sobrevivência.
São tantas (e tão pequenas) as coisas que podem nos fazer felizes. Direcionemos então nossa atenção a elas. Concentremo-nos em cada tarefa diária. Atenção a cada atividade do nosso dia a dia. Entrega total ao que fazemos. Onde estamos. No que pensamos e o que sentimos. Não haverá nenhum milagre, mas se tivermos controle sobre nossa mente, acreditem, estaremos a salvo… pelo menos por enquanto!
E assim termino o meu café da manhã.
*
A série “Presentes que me dou” contém dez crônicas, todas elas vivenciadas em tempos de pandemia. Todas as situações rotineiras adquiriram novo significado em tempos de total isolamento social. Daí esta série, publicada aos domingos pelo Blog Mirante, do jornal Estado de Minas. Escritas por mim, as crônicas são um convite à leitura da nossa realidade, pós/durante a COVID!
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Minha eterna mestra!Viajo na sua narrativa e me coloco aqui dentro do seu texto vivendo a sua história!Que delícia!E que dom de nos transportar para o seu cenário com tanta leveza...