Onde habitam os fantasmas

Alguém precisa fazer o trabalho sujo, e Sebastião o fazia de mau humor. Limpar os banheiros da rodoviária certamente não é o tipo de serviço que você faz sorrindo. Com pouca saúde, quase nada de instrução e menos ainda de dinheiro, foi o que sobrou para Sebastião. Não bastasse ter de pôr a mão na merda, o maldito lugar era ainda mal-assombrado, pelo menos, foi o que lhe advertiu o seu antecessor, um pobre e coitado velhinho, que precisou se afastar do trabalho após ouvir sua mãe (morta há meio século) lhe chamar pelo ralo de um dos banheiros.

Rodoviária não fecha. Então Sebastião começava a limpar as latrinas às quatro da madrugada, quando o movimento de passageiros era menor. Ele vestia o seu roupão cinza com um tecido grosso, feito pano de chão, empunhava o balde e o esfregão e partia para mais uma batalha sanitária.

Começava pela parte mais fácil de limpar: os mictórios. Os mictórios, por uma razão anatômica do corpo masculino, quase não se sujam. O que suja mesmo é o chão, imediatamente abaixo dos mictórios. Isso porque o viajante, ao se sacolejar, depois de esvaziar a mangueira, espalha respingos de urina que se impregnam no local. É preciso ter força no braço para conseguir vencer a urina seca aderida ao azulejo. Na maior parte das vezes, Sebastião não conseguia. Então ele maquiava o chão com um poderoso desinfetante, que não limpava, mas, ao menos, aliviava o cheiro de fazer arder o nariz.

Perdida a batalha para os mictórios, Sebastião enfrentava as pias e os espelhos. Quem pensa que as condições de higiene de uma pia de banheiro público são melhores do que as dos mictórios é porque nunca entrou no banheiro de uma rodoviária. É ali, nas pias, que o viajante escarra o que vem guardando no peito durante boa parte da viagem. Por vezes, a gosma amarela-esverdeada seca junto a cuba de louça, incorporando-se como argamassa. Sem falar nos restos de alimentos, que se desprendem de dentes imundos durante a escovação (ou, o que é mais comum, durante um simples bochecho) e espalham-se por toda a superfície da pia. Ah!, e os espelhos acima das pias… Eles não passam de um acervo de impressões digitais, melecas e até manchas de sangue.

Só depois de encarar esse complexo que conforma o portão do inferno é que Sebastião, de fato, adentra a morada do Diabo: as privadas. Não raro encontra-se ali, boiando nas latrinas, uma variada gama de matérias que não seja a propriamente dita, isto é, a merda. Sebastião já precisou pescar com o cabo do seu esfregão um par de botas, um livro do Stephen King e até mesmo uma pistola. Soube, pela faxineira responsável pelos banheiros femininos, que já se retirou até mesmo um feto humano de dentro da encanação.

Mas o que Sebastião encontrou na primeira privada que ele abriu, naquela madrugada fatídica, não se compara a nada disso.

Era ainda mais hediondo.

Ele avistou um rosto dentro da privada. Isso mesmo: um rosto enrugado, deformado, com o semblante triste, feições desproporcionais, boca retorcida, um nariz irregular e asqueroso, que parecia ter sido quebrado por um golpe de marreta, e aqueles olhos… Os olhos brilhantes que precedem o choro. Sebastião sempre soube da fama do lugar, mas jamais imaginou que iria se deparar com um fantasma dentro da privava.

Antes que pudesse soltar um grito, Sebastião bateu o tampo da privada com um baque, meteu o pé na porta da cabine do banheiro, tropeçou no cabo do esfregão e cambaleou em direção à saída do inferno. Mas quando ia passando em frente às pias, que, àquela altura, já brilhavam de tão limpas, não pôde deixar de observar a imagem que viu refletida no espelho.

Era o rosto enrugado, deformado e com semblante triste que ele acabara de conhecer. Naquele momento, Sebastião entendeu que, de alguma forma, assim como o pobre e coitado velhinho que o precedeu, precisava deixar aquele lugar — o lugar onde habita o seu próprio fantasma.

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