Peter Rossi
Naquele lugar escuro, o índio Karu corria de um lado para o outro, subia em árvores, caía, mergulhava no rio. Seu mundo era assim, simples assim, uma aquarela verde, com folhas e frutos.
Karu dormia sempre ao relento, sempre preferiu dessa maneira. Quando perguntado, apontava para o céu e todos entendiam que ele usava as estrelas como coberta. Depois de um tempo, ninguém perguntou mais. Perceberam que o pequeno índio conversava com as estrelas, só com elas, pois com os demais da tribo nunca trocou uma palavra sequer. Alguns acreditavam que ele conversava também com os animais. Os amigos chegaram a pensar que ele não tinha língua, mas não era isso, ele apenas não sabia as palavras da sua comunidade. Nasceu sem som.
Mas era feliz o Karu, mesmo no mais absoluto silêncio. Se estava de acordo sorria todos os dentes, se alguma coisa não lhe agradava, ele cuidava de juntar as sobrancelhas. O indiozinho não falava, mas subia em árvores como os macacos, e com os macacos também. Nadava como um peixe, sabia caçar e não tinha medo de nada, nem da chuva e nem do trovão. Aliás, ele adorava brincar na chuva, tingindo o corpo de barro. Amarrava folhas nos cabelos, se fantasiava de floresta.
Eles não sabiam, mas Karu, embora pequeno, tinha um grande amor. Cuará! Uma indiazinha linda, que ele só fazia olhar. Às vezes, quando ela estava a carregar lenha ou algum bicho, Karu se apressava em ajudar, mostrando a sua amada o quanto era forte. Cuará agradecia com um sorriso e, em algumas ocasiões – na verdade poucas – com um aperto carinhoso no nariz de Karu.
Os dias passavam e, à medida que cresciam, desenvolveram uma amizade muito grande. Estavam sempre juntos, brincavam juntos e juntos corriam pela floresta. Alguns índios chegaram a dizer que que viram os dois de mãos dadas, sentados num galho de mangueira, mas isso ninguém nunca pode comprovar.
Os dias passavam, e cada vez mais rápidos. À medida que a gente cresce, os danados dos dias colocam fogo no rabo e passam como verdadeiros foguetes. Vai ver que é por isso que quando mais velhos, vivemos mais cansados. Mas mesmo nos dias rápidos, Karu e Cuará não perdiam tempo e aproveitavam tudo que podiam. Cuará passou também a dormir conversando com as estrelas, acredito que foi Karu quem lhe ensinou.
Cuará, uma faladeira, e Karu, um grande escutador. Mas se entendiam, se gostavam, se amavam, ainda que sem nenhum som. Quando queria conversar sobre um assunto mais complexo, Karu usava uma varinha e na beira do rio, desenhava no chão algumas imagens. Cuará entendia tudo!
Mais dias rápidos se passaram e num final de tarde, Karu e Cuará viram chegar uns bichos esquisitos, que nunca tinham visto antes. E olha que os dois conheciam tudo quanto é bicho. Viram aqueles falantes, com barbas e com o corpo todo coberto com coisas coloridas. Alguns usavam até um apetrecho na cabeça. Tinham, também, umas armas que cuspiam fogo. Assistiram aqueles homens – embora não soubessem o que era um homem – matar alguns bichos.
Ficaram escondidos, encolhidos, em cima do galho de uma árvore bem alta, e assim os tais homens não os descobriram, e acabaram indo embora.
Karu e Cuará voltaram para a tribo, e a menina tratou de contar tudo aos demais. Assustados, os índios resolveram ficar em silêncio. Apagaram o fogo e passaram a noite que avizinhava, encolhidos em suas ocas. Pediram aos deuses que não fossem descobertos e os deuses atenderam. Depois de umas três luas, não havia mais nenhum vestígio dos tais homens por ali.
A floresta voltara a ser só deles, e Cuará e Karu não se fizeram de rogados, abraçaram as árvores, beijaram as flores e as borboletas que, assustadas, voavam em zigue-zague por uma tela azul de céu.
Numa dessas caminhadas, Karu encontrou uma coisa brilhante no chão. Meio redonda, com um cabo prateado. Colocou aquele objeto na frente do seu rosto e levou um susto! “Mas o que é isso?” Perguntou em silêncio. “Uma água de rio presa?” Karu enxergava o próprio rosto, como fazia quando quieto, ficava olhando a água do rio.
Mas teve uma ideia brilhante, guardaria aquela coisa e mais tarde faria uso dela. Não contou pra ninguém, nem pra Cuará.
Na noite, uma festa ocorria na tribo, todos dançando e cantando em volta da fogueira. Todos, menos Karu, que só dançava.
Quando se sentaram pra comer carne de tatu, Karu foi até o mato e de trás de uma moita, tirou o objeto e entregou para Cuará. Todos ficaram espantados num primeiro momento, mas acharam aquilo muito interessante. Não fazia barulho, não machucava nem nada, só fazia refletir as imagens.
Fato é que a tal água presa passou de mão em mão por toda a tribo. Todos maravilhados com as próprias imagens, sob o intenso brilho da lua, que só fazia aumentar a luz!
O pai da Karu, sem entender direito o que acontecia ali, acabou sussurrando no ouvido da sua esposa Neum, que não via a razão do filho dar aquele presente para Cuará.
A indiazinha, àquela altura, com o objeto nas mãos, não cansava de olhar, com o maior dos sorrisos estampado no rosto. Karu, ao seu lado, também não parava de sorrir.
Neum, vendo aquela felicidade toda, cuidou de explicar ao seu cacique:
– Meu índio velho, como você é tolo, nada percebe à frente do próprio nariz! Aquela água presa que Karu deu pra Cuará foi uma forma dele dizer, com o coração apaixonado que ele tem e com todas as palavras que não consegue falar, que ela é a coisa mais linda desse mundo!