Ela estava despedaçada. Partida. O peso e as vicissitudes do viver a partiram. Faltava um pedaço que foi arrancado. Na verdade, faltavam também peças, parafusos, palavras. Ela costumava seguir firme, de cabeça erguida, ereta, inteira. De repente, não é mais possível se inteirar. Não está cabisbaixa porque não há mais cabeça.
Agora, já não há mais certezas. Agora lhe restam apenas os fragmentos possíveis de uma não-existência. Frações vívidas do amor, amuleto que condensa passado e futuro. Já não é possível sustentar a densidade filosófica do haver.
Ela não faz as unhas como antes fazia. Não mais usa os anéis como usava. Dispensa as sandálias de salto e as saias curtas. O coração está quebrado. Ela reconstrói-se nas brechas do vazio das representações impossíveis de serem feitas.
Ela anda lentamente pelo caminho do meio procurando o que os olhos já tinham visto, vestígios do dia. Caminha pelo solo fértil do frescor do olfato. Encontra o tédio. Quer ouvir uma música que ainda não foi feita. Ela distrai-se com as sombras e ilude-se com a ideia de que todos já fomos crianças algum dia. Mas não há mais caminhar. Não há mais pés, nem caminhos.
A efemeridade do fogo queima suas entranhas. As perdas a transportam para potentes transformações. Os aparelhos consertam os dentes, mas não o sorriso. Carrega consigo as imagens que a memória e os algoritmos não deixam esquecer. Daqui a pouco será muito tarde.
Nas varandas dos arvoredos, os devaneios sobre os corpos que se precisam. Perdeu o céu. Sente saudade do futuro; resquícios do real, das experiências vividas. Detesta inventar estórias que já existem.
A frágil membrana não se rompe. De dia, atravessa a hostilidade e o calor dos desertos de areia. Ela seca. E evapora. À noite, sente frio, medo e solidão. De vez em quando, se deleita nas bordas de um oásis e se camufla nas asas azuis de borboletas. Voa com elas.
Em seu mundo paralelo, está presa nas abstrações do invisível. A certeza da fusão lhe revela a transitoriedade do término. Ela é perecível, se desmancha no que não é alheio. Nas contradições positivas do universo, o fim é sempre um recomeço. O tempo parou.
A dor sufocou as palavras. Viraram imagens. Virou miragem.
Foto: tirada pela autora no dia 23/08/20, na rua Santa Catarina com Rua Aimorés.
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Cérebro que produz febrilmente, parabéns, Daniela!