Raniere Sabará
Durante essa longa jornada no mundo que damos o significado de vida, venho refletindo sobre os lugares e como eles nos trazem o sentimento de pertencimento ou desnivelamento da construção do nosso “eu”.
Pela parteira de meu ventre, crio vida e a casa se torna o primeiro espaço onde me coloco no mundo. Um lugar no qual chamo de lar por meio de um simbolismo afetuoso. Nas brincadeiras de infância, nos cheiros peculiares dos moveis e alimentos, no encontro dos pés com a terra que se espalha no quintal entre as bananeiras e jabuticabeiras, nasce um olhar inquieto e aventureiro, como uma criança que desbrava o universo na imaginação.
Começo a entender a textura dos objetos. Minha atenção se concentra em cada detalhe de nomes, olhares e gesticulações dos grandes sábios sobre os ensinamentos que a vida pode nos oferecer. E como a vida nos oferece… nos oferece tanto, que dentro desses encontros, sentimos os desencontros.
São desencontros não porque quiséssemos que assim fosse, mas porque os ensinamentos dos nossos sábios já não fazem tanto sentido em meio a construção do “eu”.
O olhar inquieto que queria desbravar o universo, sai da imaginação e, no mundo real, desmitifico todas as sensações e posições ideológicas. Como feito nesse papel em branco, ao transcender e reinventar a cultura de meu povo, crio um universo infinito de significados. (Re) significar.
A casa de minha infância, que me fez sentir o que de fato é o pertencimento, agora se transforma nos espaços que me trazem uma leveza e alegria, como as cócegas me feitas na infância. Nessa casa, me feitiço de tudo aquilo que um dia me neguei a viver.
O som dos instrumentos que na infância tiravam meus pés do chão, agora se firmam no toque da percussão e do violão. A minha voz silenciada nos choros, agora se encontra na posição do selvagem que me habita. Nos pelos pelo meu corpo que afloram meus desejos. No âmago de um grito pela autonomia do meu próprio corpo, como na ciranda de todas as mulheres sábias.
A casa de minha infância, que me fez sentir o que de fato é o pertencimento, agora se encontra no silêncio das ruas de pedra que caminho em meio a solidão. Nos cadeados que se abrem do romantismo que me habita em meio as paixões libertárias. Do copo que se enche naquela cadeira de bar em meio a tantas risadas. Nos calorosos saraus, manifestações e debates que enchem de lágrimas os olhos que me pertencem.
Esse tal “agora” … Em meio a tantas aventuras que me fizeram reencontrar aquela criança que cultivava o sentido da vida ao contar as minúsculas estrelas no céu, digo: não que a casa de minha infância tenha perdido o pertencimento que me habita, mas, nesse novo lugar que chamo de lar, a criança que reencontrei, ressignificou o ato simbólico do que é ser mulher.
Parabéns Raniere! Muito lindo texto !❤️