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Duas da manhã

Victória Farias

O momento exato eu nunca saberei precisar. Aqueles gestos ficaram impregnados na minha cabeça e por mais que me esforce, a única informação que consigo me lembrar daquela noite é: são duas da manhã. Talvez, em algum momento, eu tenha tido noção disso; ou talvez tenha deixado de contar os segundos sem sentir. Não saberei dizer com certeza porque nunca conseguirei acessar novamente esse lugar.

Para mim, esse sonho distante será sempre um ponto de fricção na minha memória, um espaço entre o “lembro” e o “não lembro”; entre o “foi assim que aconteceu” e o “talvez eu esteja exagerando um pouco”. Que aconteceu, não tenho como negar, e sempre terei o tic-tac das duas da manhã para me dar essa certeza: nem em meus sonhos mais profundos eu poderia, por mim mesma, inventar tanta beleza sem ter a realidade da existência dela como base. 

No ponto em que me encontro, consigo caminhar pelo passado e apreciar o presente, mas, infelizmente, e por mais preparada que eu esteja, isso não me dá nenhum controle sobre o futuro. A madrugada me impede de seguir em frente e a única coisa que consigo sentir é o que sentem os amantes, quando a sua companhia não aparece ao cair do sol em sua janela: Ō, quam longa nox est! Quão longa é a noite para aqueles que precisam do dia para se sentirem vivos. 

O meu relógio de parede segue seu tilintar voltando constantemente para o ponto inicial, às duas da manhã. Todos os dias, todos os segundos, a madrugada é profunda e não há lua no céu. A pintura da noite é tão escura quanto uma balada dançante, a fumaça da neblina imita o gelo seco e o silêncio vazio me lembra o barulho oco que a música eletrônica fez ao encher meus ouvidos. 

O sentimento das duas da manhã ainda me persegue e quando fecho os olhos, mesmo dias depois, ainda consigo sentir a madrugada adentro tomando conta de mim. Felizmente, para o meu consolo, o sol segue sendo para todos e mesmo que demore, nenhuma noite eterna pode impedir a ferocidade da claridade de um dia de verão.

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Pintura: The Drinker, Erich Plontke, Oil on Canvas, 1910

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