Peter Rossi
O circo mambembe desaguava sua lona suja no lote vazio, ao lado do grupo escolar. Cercavam com uma corda marrom e quando ela acabava, enfileiravam gaiolas, jaulas e umas poucas camionetes.
O cheiro de serragem tomava conta do lugar, mesclado ao dos animais, esquálidos, mal tratados. Mas, naquela época, não havíamos ainda sido despertados para esse absurdo. Animais eram serem inferiores, mais do que hoje são, embora eu não pense assim. Já me peguei a matutar que vir sob a forma de animais é uma evolução. Mas esse não é o tema para o qual lhes convido. Volto ao circo.
As tardes de domingo na minha cidade não eram as mesmas. Amigo e vizinho do filho do juiz, uma das maiores autoridades do município, usufruía de um camarote especial. Íamos em todas as sessões, isso mesmo, em todas elas. Fossem quantas fossem. Nossas almas de menino não nos permitiriam nada diferente.
Ficávamos amigos, ou pelo menos conhecidos, dos porteiros, dos vendedores de pipoca e balas e não era incomum recebermos alguns agrados ao final do espetáculo. Saímos com os bolsos cheios de balas, sem gastar uma moeda sequer.
Em muitas noites, éramos nós, os artistas, e umas poucas almas a conviver debaixo da lona suja.
Quando o circo era um pouco mais rico, existia a música ao vivo. Num palco erguido ao lado do picadeiro, um baterista, um rapaz na guitarra e outro no acordeom faziam a festa da garotada.
Em seguida, com uma imensa cartola na cabeça e uma barriga enorme, o dono do circo fazia às vezes de mestre de cerimônias, a apresentar os trapezistas uruguaios, o mágico italiano e o atirador de facas vindo dos Estados Unidos. Não sabíamos que todos eles nasceram no nordeste brasileiro e, por isso mesmo, ficávamos a imaginar onde viviam.
Os palhaços, entrando sempre entre uma apresentação e outra. Eles, sempre brasileiros. Os nomes: “chumbinho”, “espoleta”, “cai-cai”, dente outros.
Eles tinham mesmo que falar nossa língua, afinal como iriam se comunicar?
Eu era apaixonado pelos palhaços. Achava a singeleza de suas brincadeiras muito especial, embora só tenha me dado conta do que é singeleza, muitos anos depois.
Caíam sem se machucar, pulavam, sorriam a chorar.
Eu devia ter não mais do que doze anos quando tomei toda a coragem do mundo, aquela coragem que nunca tive, e cheguei perto do “Espoleta”. Disse a ele que queria aprender a ser palhaço.
“Espoleta” me convidou a vir para a matinê do próximo domingo, mas que chegasse uma hora antes da primeira apresentação. Assim fiz. Não demorei a encontrar um homem calvo, com uma cicatriz na testa, a se lambuzar de um creme branco. Molhava a ponta dos dedos e cuidava de espalhar a cor em seu rosto. Ao me ver, fez um gesto com as mãos. Ainda não me dava conta de quem era. Mas, após ouvir sua voz, percebi que era o “Espoleta”.
– E então, menino, quer trabalhar comigo hoje?
Minhas pernas tremiam. Não sei se teria coragem, mas, com a impulsividade de menino, disse que sim.
Ele acabou de se maquiar, pôs a peruca vermelha e se transformou no palhaço que eu conhecia.
À essa altura, o mágico italiano passou por ali e cumprimentou o “Espoleta”.
– E aí, amigo? Pronto pra labuta?
Foi quando entendi que o mágico italiano era brasileiro.
“Espoleta”, após completamente fantasiado, trouxe uma calça branca de bolas vermelhas e sapatos pretos imensos. Me vestiu, e de repente eu tinha virado um palhaço também. Completava meu traje uma camisa amarela e uma gravata borboleta muito grande, na cor lilás. Ao invés de peruca, besuntou meu cabelo com gordura e esticou para cima, como moicano.
Eu teria que entrar sentado, dentro de um carrinho de mão e, de quando em vez, cair no chão, cada vez que “Espoleta” perdesse o equilíbrio na condução.
Atrás das cortinas que levam ao palco, eu não conseguia esconder minha ansiedade. Não tinha contado prá ninguém essa peripécia. Falo dela agora, quase cinquenta anos depois. Mesmo meus filhos só saberão quando lerem essa crônica.
O dono do circo anunciou a entrada do “Espoleta” e lá fomos nós. Eu sentado no carrinho de mão, e o palhaço com as mãos nas alças. Fingindo estar desequilibrado, ele tombou o carrinho e eu, desatento, estatelei no chão. Esse não fora combinado e, por isso mesmo, soou natural, com gargalhadas de todos que ali estavam.
A calça que eu usava tinha uma camada de óleo de soja e, por isso mesmo, a serragem grudava no meu traseiro, o que fazia aumentar a sonoridade dos risos.
Levantei, meio assustado, e sentei no carrinho outra vez. Os tombos foram vários, mas para esses eu já estava preparado.
Ao final do espetáculo, iríamos, mais uma vez, entrar no picadeiro. Já anoitecia e, com isso, as luzes formavam um espectro mais aconchegante.
“Espoleta” me perguntou se eu estava bem e em seguida preparou o carrinho.
– Vamos lá, rumo ao sucesso!
Eu, do meu lado, já acreditava ser artista. Imaginava meu nome nos cartazes do circo e tinha a certeza absoluta que nunca mais sairia dali.
O baterista fez rufar os tambores e nós entramos, logo depois da saída de Jane, a elefanta. Ela passou por mim com um olhar triste, tive até a impressão que dera uma piscadela a me encorajar.
– Senhoras, senhores e crianças, para finalizar nosso espetáculo de hoje, convido-os a assistir a performance de “Espoleta” e “Picolé”.
Não tinha entendido, a princípio. Só depois percebi que “Picolé” era ninguém mais, ninguém menos, que eu!
Nosso combinado corria tranquilamente até que, por infortúnio, o “Espoleta” tropeçou de verdade e me fez voar do carrinho. Bati meu ombro nos retângulos de madeira que delimitavam o picadeiro. Acho que bati também o pescoço. Me lembro que a dor era enorme e não fiz outra coisa senão chorar. Fazia-o convulsivamente e a tosca maquiagem no meu rosto desabou numa macabra cachoeira colorida.
“Espoleta” me pegou no chão, me colocou no carrinho de mão e fez perceber a todos que tudo aquilo fazia parte do espetáculo. Alguns sorriam, outros não. Enquanto saía do picadeiro, percebi alguns olhares desconfiados.
Um dos espectadores era médico e logo se apresentou aos músicos que estavam no palco, se dispondo a ver se algo mais grave tinha acontecido. Assim que acabei sendo atendido, atrás das cortinas, pelo médico mais famoso da cidade.
Enquanto me examinava, não pude deixar de ouvir a discussão entre o dono do circo e o “Espoleta”.
– Você é um idiota! Já disse mil vezes para não beber antes do espetáculo. Veja o que fez? E se esse menino morrer, como ficamos?
O médico, que também a tudo escutava, interrompeu:
– Ele está bem, foi só uma luxação no ombro, nada mais que isso.
“Espoleta” veio correndo ao meu lado e num abraço que só fez aumentar a minha dor, sussurrou:
– Desculpa! Graças a Deus!
Eu nada conseguia dizer, a dor era maior que eu. Pensava em como sair dali. O que meus pais iriam dizer quando chegasse em casa? Morria de medo e por isso chorava copiosamente.
“Espoleta” me pegou no colo e me levou para o fundo do circo. Lá pegou uma bacia, um pano limpo e tratou de lavar meu rosto e meus cabelos. Pronto, eu já estava recomposto.
Fez questão de me levar em casa, embora eu discordasse.
– Aqui o adulto sou eu, vou com você!
Chegando na vila onde morava, mostrei a ele qual era a casa. Algumas poucas palmas foram suficientes e lá vinha meu pai, meio carrancudo.
– Obrigado, meu senhor. Já soube do acontecido. De agora em diante é comigo. Que Deus lhe dê em dobro.
“Espoleta” já virara o corpo e seguia em sentido contrário. Mas ainda teve tempo de ouvir:
– E o senhor, por favor, não transforme meu filho em palhaço. Já basta a vida e ainda terá que se humilhar perante as pessoas, em troca de algumas moedas?
“Espoleta” enfiou as mãos nos bolsos que a roupa não tinha e seguiu adiante. Nada tinha a responder. Mas, a essa altura, chorava. Não conseguia impedir que as lágrimas rompessem seus olhos. Um passo, atrás do outro, reviu a vida inteira. A frase cortou seu peito como um punhal. Sentia a dor do desprezo por entre as costelas.
Do meu lado, só fiz fingir que nada tinha escutado. A dor no ombro era maior, eu também chorava, até por medo dos castigos que meu pai aplicaria.
Alguns dias e o circo já tinha partido, e com ele “Espoleta”. Minha dor cedera, o mesmo acontecendo com minha vontade de ser palhaço. Na verdade, achei que palhaços viviam sorrindo, nunca imaginei que chorassem…
Para
Parabéns pelos textos . Bem escritos e sensíveis