O Carimbo

Rosangela Maluf

A população de Feijãozinho estava chegando ao seu limite.

Cem dias de pandemia. Cem dias de aflição. Cem dias se contendo: hoje não sai, só amanhã; amanhã sai mas depois de amanhã não pode mais. Ir ao boteco “tem tudo” do seu Quinzinho pode, mas só pra comprar no armazém e algum remédio na farmácia. O bar continua fechado: nada de pastel, empadinha ou caldo de cana. A pequena padaria agora só vende pão de forma industrializado, nada de pãozinho artesanal nem pão de queijo. Que porcaria!

Serviços essenciais podem abrir: a única farmácia, o único postinho de saúde, a única padaria-lanchonete e o único barbeiro que abre mesmo sem poder: – Quem é que vai me multar, quero ver? – diz seu Manoelito. 

Guarda Municipal, não tem. Auxiliares de trânsito, também não. Cadeia, não tem. Igreja também não, mas tem a capela de Nossa Senhora Aparecida. Escola só ensino fundamental, que funciona no casarão, em frente à capela. Ao lado do boteco do seu Quinzinho fica a farmacinha, assim chamada porque, na verdade, não tem quase nada mesmo.

O que se passa em Feijãozinho é sui generis: com pouco mais de mil habitantes a cidade pertence a Feijões, um pequeno município, a 16 quilômetros de distância. O prefeito de Feijões tem um irmão que trabalhou como soldado da PM, na capital. Entretanto, por ser um grande causador de confusões, o ex-soldado foi morar em Feijões a convite do irmão prefeito. 

Mas como arrumar alguma coisa para o ex-soldado? O prefeito teve uma brilhante ideia, promovê-lo a supervisor da vila de Feijãozinho. Supervisor de uma vila? Isso existe? Não. E o que ele deveria fazer? Nada. Alugou uma casinha, levou o cachorro, a vara de pescar, mobília pouca, um tapete arraiolo, presente da mãe e assim, já instalado, foi pouco a pouco ganhando a simpatia do povoado, mesmo daqueles mais revoltados que não aceitavam tamanho abuso com o dinheiro público. Era gente boa, o sujeito!

Quando a pandemia se instalou pra valer na capital, Feijãozinho não havia ainda registrado nenhum caso da Covid-19. Encontravam-se no terceiro mês de cuidados especiais, distanciamento, higiene rigorosa e total atenção aos primeiros sintomas de qualquer gripezinha. (Ah, o senhor presidente…)

O governador vai pra TV e fala uma coisa; aí vem o prefeito e fala outra. A gente fica sabendo que o presidente falou outra coisa, mais grave e ainda pior; se eles não se entendem, o que será de nós? 

Foi num domingo, pela manhã, que tudo aconteceu. Com o Postinho fechado, ao terceiro espirro do seu Quinzinho, o filho correu com ele até Feijões. Lá foi internado, mas no final da tarde havia piorado tanto, que fora levado, às pressas, para a capital. Diziam que era caso de UTI, respiração artificial e etc. 

A vila inteira se perguntava, como assim? Se nenhum estranho chegara para os finais de semana nas cachoeiras; se tudo nas cidades vizinhas encontrava-se parado e fechado: ninguém entrava nem saía da região; se os canais de TV a toda hora mostravam o cuidado rigoroso, já que o número crescente de mortos era assustador. Como o seu Quinzinho se contaminara? O fato é que as notícias não eram nada boas.

Segunda-feira, nenhuma novidade…

Terça-feira, nada de notícias…

Quarta-feira: e o seu Quinzinho?

Quinta-feira: sabe quem faleceu?

Foi uma imensa tristeza. Os preparativos cuidadosos para o velório limitado; apenas três horas entre a chegada do corpo e o enterro. Pessoas da família e os mais chegados. De longe. Com máscaras. Sem abraços de pêsames. Com todas as orientações de higiene. Álcool em gel. O mais rápido possível. E o irmão do prefeito atuando, ajudando, orientando, usando máscara & luvas – comme Il faut! E o seu Quinzinho foi o 12º defunto a ser enterrado no pequeno cemitério, nos fundos da capela. E a primeira vítima do tal vírus novo. Como não havia sinos, o silêncio foi ainda maior.

Duas semanas se passaram. Dois outros casos da doença foram confirmados, mas nenhum óbito. As pessoas se internavam, passavam quatro/cinco dias no hospital de Feijões e voltavam pra casa. O irmão do prefeito anunciava: – Estamos com sorte. Vamos continuar em casa e usar máscara toda vez que precisarmos sair. E não se esqueçam do álcool em gel pra tudo, pra tudo mesmo!

Sentado em frente à sua casa, observando o escasso vai e vem das pessoas, o irmão do prefeito viu um grupinho de três moleques, andando de bicicleta – sem máscaras! Ao dar um pulo até o armazém para comprar pó de café, viu também duas comadres conversando na porta, sem máscaras. Nos dois casos, chamou a atenção dos pequenos grupos e sugeriu a proteção, para preservarem a própria saúde e a do outro. Os carros que passavam raramente traziam motoristas usando máscaras, mesmo com outras pessoas dentro.

Estarrecido, constatou no final de semana oito novos casos da doença avassaladora, ou seja, o vírus chegara mesmo à vila! E até dona Lígia do pastel chegara a óbito! Mais uma morte. Tristeza. Muita tristeza.

Cutucando os dentes com um capinzinho colhido ali mesmo, no canteiro da pracinha, o irmão do prefeito teve uma ideia. Voltou pra casa, tomou banho, trocou de roupa, pegou sua moto e foi ver o irmão.

Tive uma ideia – ele disse. – Já sei como resolver o problema da falta de juízo de quem não se preocupa com a própria saúde nem com a saúde dos outros. Escuta só: vamos mandar fazer um carimbo. Uma caveira. E vamos encomendar tinta preta, daquelas que não saem de jeito nenhum. Todo cidadão que for apanhado sem usar máscara, jogando futebol ou reunido em grupinho vai ser chamado pra uma conversa. Dessa conversa ele vai sair com um carimbo no braço. Quando ele adoecer, ficar mal e tiver que ir para o hospital, não vai ser atendido… pronto, quero ver. Não vai ser atendido porque quando deveria se cuidar, não se cuidou. Quando deveria ter pensado nos outros, não pensou. Na hora de ocupar um leito no hospital é justo que o leito não seja pra ele. Me diga, é ou não é? Os médicos vão olhar o carimbo, vão dizer: esse cara não colaborou. Coloque ele lá fora. Que o sujeito espere com toda calma a sua vez, né não? 

O prefeito respirou fundo, fechou o computador, consertou as calças no corpo e colocando a mão nos ombros do irmão, convidou-o a ir tomar um café!

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