Guilherme Scarpellini
scarpellini.gui@gmail.com
O que os gatos pensam dos seres humanos? São seres limitados em sua miserável existência. Dependem de relógios para não se esquecerem dos compromissos que prefeririam esquecer. Buscam a companhia dos outros para não conviver com eles mesmos. Saem cedo e retornam ao cair da noite. E retornam menores, encurvados e dilacerados. Não bastasse isso, ainda precisam de banho. Que merda é a vida de um ser humano. Elvira tinha exatamente essa opinião da vida de Pedro. Pedro, ao seu tuno, percebia em Elvira uma sabedoria oculta. Um ar de mistério, misticismo, superioridade. Nos seus mais simples movimentos havia lições inteiras. A sua preguiça era um convite à paciência e à reflexão. E atrás daqueles enormes olhos amarelos cravados na pelagem lisa e negra, feito luas cheias na escuridão, havia mais… Alguma coisa havia ali. Essa coisa se manifestava às vezes. Por exemplo, quando Karla dormia com Pedro. Na presença dela, Elvira tornava-se arredia e passava o dia escondida no cesto de roupas. Isso não acontecia com as outras garotas. Talvez Elvira soubesse que Karla, aos seis anos de idade, gostava de lançar filhotes do telhado para ver se os gatos caiam mesmo de pé. Talvez Elvira visse nela o seu espírito mau. Quando Pedro apareceu com sua nova guitarra elétrica, Elvira não reagiu bem. Reagiu pior ainda ao ouvir o som do instrumento negro e opaco, feito um pedaço da meia-noite com cordas. A princípio, a reação da gata era até compreensível, porque Pedro não sabia tocar. Mas, inexplicavelmente, ele aprendeu em três dias. A relutância de Elvira evoluiu na mesma proporção. Enquanto Pedro produzia aquele som dissonante, rápido e potente, Elvira eriçava os pelos, soltava grunhidos e arranhava o sofá. Foi preciso fechar a gata no quarto e proteger o colchão com lona. Só assim Pedro pôde praticar a música sombria que, milagrosamente, saía de seus dedos. Passou noites em claro acariciando o braço do instrumento e encontrou alguma alegria em escalas musicais estranhas e desconhecidas. O som que ele tirava da guitarra elétrica era sujo, distorcido, hediondo e, ao mesmo tempo, dotado de alguma beleza. Junto com o som da guitarra, era possível ouvir Elvira aprontando uma mistura selvagem de sons felinos dentro do quarto: rosnados, grunhidos e uivos. Se os vizinhos ouvissem aquela harmonia macabra, de certo, arrepiariam os cabelos. Pelas manhãs, após noitadas de solos de guitarra, Pedro saia para trabalhar. Desde que passou a praticar o instrumento, a vida tornou-se um pouco menos tormentosa. Num só dia ele chegou a sorrir três vezes. E não era para menos: ao chegar em casa, Elvira e a guitarra esperavam por ele. Foi na sexta-feira, após um dia exaustivo que arrancou dele dois sorrisos e (pasme) uma gargalhada, que Pedro, ao abrir a porta do apartamento, quase teve um troço O cenário era desolador. O sofá foi reduzido a frangalhos. Havia pedaços de estofado em todos os cantos. As paredes foram violentamente riscadas, a ponto de expor a argamassa por trás da tinta branca. Inexplicavelmente, o teto também estava arruinado. Agarrada ao lustre, com olhos arregalados e o pelo eriçado e uma cara de quem foi maltratada, estava Elvira, paralisada de medo. Curiosamente, pouco antes abrir a porta, Pedro teve uma ligeira impressão de ter ouvido um solo de guitarra.
*