Daniela Piroli Cabral
contato@danielapiroli.com.br

Nas manchetes dos meus dias, a repetição. Caminho a pé atravessando a árida rotina. O cotidiano está cristalizado no infinito das horas. Os mesmos hábitos se repetem na permanência do calendário. Estou cansada. Haverá uma brecha para o existir? Sigo o ritmo dos ponteiros do relógio e a cadência tediosa do que é ordinário, comum. Nas bordas da banalidade me construo. Me faço na concretude da constância. 

Há um pedaço de mim que preciso elaborar. Fico assim, querendo ser infinita, mas a vida me é subtraída a cada dia. Tenho medo das vidas cheias e das existências vazias. Haverá possibilidade de criar? E essa morte que anda me rondando? Para que ela me espreita se posso romper a qualquer momento? Será que é porque duvido?

Até nas vidas aparentemente extraordinárias há reproduções. As palavras se repetem. Os desejos se repetem. As mesmas frivolidades. Até na vida mais repetitiva, há o extraordinário. Algo que brota com a sutileza do olhar e cresce. E se faz pungente. Brilha e inspira. O dia que se transforma por um gesto de cuidado, por um carinho manso e delicado com as pontas dos dedos. O jeito suave de se repartir. A flor amarela. Haverá um tempo para amar?

Minha semente foi plantada em solo de busca e de estabilidade. Muitas coisas foram escolhidas e laboradas. Outras coisas simplesmente sofreram a ação sábia do tempo e me foram dadas como grandes dádivas. Elas não foram procuradas, apenas me encontraram enquanto eu caminhava distraída. O tempo não me esmaga mais.

Quando eu era criança gostava de fazer trabalhos de escola em cartolina branca. Ela vinha enrolada da papelaria. Sublime era o momento em que eu a abria e colocava os dois pés de chinelo nas bordas para mantê-la esticada enquanto eu trabalhava. Aquela tela em branco era a maior dimensão de mim. E era ali que eu me projetava com caligrafias, decalques e canetinhas. A realidade ficava em suspensão. O tempo não existia. Por que perdemos o simples? Por que nos distanciamos do essencial?

Já adulta, descobri que sou dos contrastes, por vezes irreconciliáveis. Depois do retorno de Saturno, abandonei alguns tetos sem reparo. Perambulei pelo mundo e me perdi no outro hemisfério. Mas me divirto nos encontros dos equinócios subjetivos. Experimentei o desapego e a vida nômade. Deixei vestígios. O sal, o suor, as cinzas. Ainda consigo voar. 

Ontem fui trabalhar de bicicleta e sonhei com porta retratos. Neles, havia fotografias dos meus fantasmas e dos meus irmãos. Foi preciso olhar. E não é possível des-ver.

*

Curta: Facebook / Instagram
Daniela Piroli Cabral

Share
Published by
Daniela Piroli Cabral

Recent Posts

Feliz Natal

Mário Sérgio Todos os preparativos, naquele sábado, pareciam exigir mais concentração de esforço. Afinal, havia…

14 horas ago

Natal? Gosto não!

Rosangela Maluf Gostei sim, quando era ainda criança e a magia das festas natalinas me…

20 horas ago

Natal com Gil Brother

Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com Com a proximidade do Natal e festas de fim de ano, já…

2 dias ago

Cores II

Peter Rossi Me pego, por curiosidade pura, pensando como as cores influenciam a nossa vida.…

2 dias ago

Corrida contra o tempo em Luxemburgo

Wander Aguiar Finalizando minha aventura pelo Caminho de Santiago, decidi parar em Luxemburgo antes de…

3 dias ago

Assumir

Como é bom ir se transformando na gente. Assumir a própria esquisitice. Sair do armário…

3 dias ago