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Guilherme Scarpellini
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Primeiro ato.

O rapaz atrás do balcão pesa o saco de pão, e o cliente vai embora. Outro saco de pão e, depois, mais outro. Até que todos os clientes vão embora — exceto eu, que resisto indeciso em frente à vitrine de pães: rosquinhas açucaradas, brioches salpicados por fios de ovos ou croissant de queijo com goiabada?

Nada disso.

Quero mesmo é ouvir a conversa do rapaz do balcão com a mãe dele. Sem interromper seus afazeres, ele ativa o viva voz no celular:

— Mãe, tem Tylenol aí em casa? — falou.

— Tem não, filho. O que é? — a voz da senhorinha retumbou do alto falante.

— Dor no corpo, dor de cabeça. Resfriado. — uma luz vermelha acendeu.

— Será que não é Covid, não? — a tensão pairou no ar.

— Acho que não, mãe. Não tenho falta de ar — respondeu. — Mas atendo a um cliente e parece que corri uma maratona.

De repente, perdi a vontade de continuar escutando a conversa.

Segundo ato.

Todo dia ela acorda cedo, enfrenta o ônibus, atravessa a cidade e, antes de o sol brilhar com força, desembarca em frente ao prédio onde mora a minha irmã.

Enquanto a mãe trabalha fora, ela cuida do bebê. Mas não sem antes higienizar as mãos, trocar a máscara, mudar a roupa, tirar os sapatos, calçar os chinelos limpos, limpar os chinelos limpos e passar por uma câmara esterilizante de frente e depois voltar de ré. Ao final, quando estiver expelindo álcool em gel pelas orelhas, dará colo ao meu sobrinho.

Mas, desta vez, ela não chegou lá.

É que quando ia estender os braços para receber a criança, abriu os olhos inchados, puxou o ar por pelo nariz congestionado e disse “vem pra titia”, um tanto fanhosa.

— Nada demais. Deve ser só um resfriadinho. — argumentou com os pais do bebê.

Mas nada adiantou. Naquele dia, ela voltou mais cedo para casa.

Terceiro ato.

Muitos são os que torcem os narizes quando me nego a compartilhar o elevador do prédio. Não ligo para eles. Só digo: vá! E eles vão — me xingando.

Demora, mas espero até chegar vazio esse eficiente compartimento de vírus, perdigotos e até flatulências, que, às vezes, transporta seres humanos também.

Qual não foi a minha surpresa quando fazia um bom tempo que eu estava esperando pelo elevador e um sujeito, sem máscara, se posiciona ao meu lado. Olho para ele. Ele olha no relógio. Coça a cabeça. Olha no relógio.

Então a porta do elevador se abre, e ele diz para a pessoa lá dentro:

— Você se importa seu eu entrar sem máscara?

Ao que ela respondeu:

— E por que me importaria? Acabei de testar positivo.

Fui de escadas. Afinal de contas, o décimo quinto andar não é tão alto assim, como o décimo sexto.

Guilherme Scarpellini

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Guilherme Scarpellini
Tags: crônica

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