Sobre marquises e cães

Sobre marquises e cães. Fonte: Pixabay
Daniela Piroli Cabral
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Há exatos sete dias caiu uma tempestade em Belo Horizonte. Choveu muito por volta das duas da tarde. A tormenta torrencial me pegou de surpresa, eu estava na rua caminhando com a Lola, minha cachorra. Ela precisa emagrecer, está ficando gorda. Diminuí a ração diária dada a ela e também seus aperitivos preferidos: pão francês, biscoito de polvilho escaldado e bordas de pizza.

De quebra, também diminuí o índice glicêmico da minha própria dieta. Mas o veterinário foi taxativo: ela precisa se exercitar para emagrecer e também para evitar problemas ortopédicos futuros. Com isso, eu também aumentei a quantidade de passos diários.

E lá fui eu, na brecha do horário de almoço estendido, vencer a pé os sete quarteirões entre a minha casa e a Praça da Liberdade. Chegando lá, o céu subitamente se enerva com a nossa presença e dana a cuspir raios e, respeitados os limites da velocidade do som, trovões em seguida. O vento forte assopra de lado anunciando que é melhor voltar para casa. E rápido. Mas é inútil correr. Gotas daquela grossura começam a pingar incessantemente.

Lola, que tem pânico de chuva, desanda a correr desembestada rumo ao nosso destino (ela sabe exatamente qual é a esquina da praça que nos conduz ao caminho de volta). E eu desembestada correndo junto, tentando mantê-la perto de mim pela coleira. Mas a essa altura, já não eram gotas que caíam, eram lágrimas torrentes da maior tristeza do mundo. 

A força com que ela e seus 35 quilos me puxavam era proporcional ao seu desespero. E eu, à beira de me esborrachar de cara no chão por causa do calçado liso contra a rua coberta de lodo e água, fui obrigada a largar a guia para evitar um acidente. Mas nem Pandora se arrependeu tão rápido desta atitude precipitada quanto eu. Lola avançou desgovernada por entre os carros para atravessar a rua. 

Por pouco, mas por muito pouco mesmo, não foi duplamente atropelada. Duas freadas bruscas e quase simultâneas: um carro e uma caminhonete. Gritei desesperada e corri o mais rápido que pude a ponto de recuperá-la (não tão sã, apenas salva) na mistura do tráfego. Agarrei-me a ela com toda a força e consegui nos abrigar da chuva numa ampla marquise de um prédio residencial do bairro de Lourdes. Ficamos lá por quase uma hora cheia esperando a chuva passar (que, juro, vinha de todos os lados, inclusive do próprio chão). 

Cheguei em casa ensopada e extenuada, mas não deixei de reparar na ampla marquise do edifício em que moro. Lá estava ela, imponente. Essa construção saliente que avança em relação ao alinhamento do prédio serve de proteção em relação à chuva, ao sol e a objetos voadores não identificados da vizinhança. Mas a marquise é também outro tipo de abrigo. 

Lá, como em muitas outras pela cidade, à noite dorme um homem. Um morador de rua. Ele chega por volta das nove, mexe no lixo, come algum resto, retira e guarda objetos de alguma serventia, ajeita seu colchão (que é um banner grande de lona dobrado ao meio), e se cobre com um pequeno cobertor cinza de poliéster. 

Numa manhã dessas, ao voltar da padaria, presenciei uma discussão envolvendo um vizinho e o morador da marquise:

– Mas você não pode dormir aqui, aqui é rua.

Olha, eu posso sim. Se eu fosse um cachorro, você não se incomodava e me deixava ficar. Então eu fico e pronto.

Um silêncio ensurdecer paira no ar. Deve ter alguma coisa errada neste mundo em que marquises podem abrigar cães, mas não humanos. E, definitivamente, a pior doença do mundo não é a Covid-19.

*
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