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A Casa da Tia Ruth

Rosangela Maluf

Sempre digo que, ao longo da minha vida, tive três mulheres excepcionais entre aquelas que muito me marcaram: minha mãe, mulher maravilhosa, grande amiga, bem humorada e muito engraçada. Uma mulher extremamente divertida, inteligente, batalhadora, moderna. Uma cabecinha privilegiada, colocando-a anos luz à frente do seu tempo. Depois a minha tia Ruth que ornamentou com flores, cores, fogos e festas a minha infância tão feliz e divertida.

Já adulta, estudando na capital, tive a tia Luzia com quem vivi por muito tempo, dividindo o canto, o bandolim e o gim-tônica; muitas confidências e sonoras gargalhadas. Éramos as duas muito bem humoradas, muito próximas, muito amigas e muito parecidas, em tudo. Desde que passei no vestibular até me formar e mesmo já trabalhando, convivi com ela, num total de oito anos.

Sendo assim, na minha infância, o final do semestre escolar me trazia uma alegria diferente, com três significados, todos fortes: começava a temporada de férias, logo chegaria o Natal e depois do Natal, as férias em Nova Era, onde vivia a minha tia Ruth. Aos oito anos de idade tudo o que eu mais queria era ficar com ela, ajudando na arrumação do hotel, colocando e tirando a mesa para o almoço e o jantar, cuidando um pouco também da tia Nenen, já bem idosa, irmã da minha vó Belinha de quem ela cuidava com todo carinho. 

Com animação incomum, arrumava minha mala de viagem, organizava as roupas, o chinelinho, sapato e sandália, separava as camisolinhas, calcinhas, enfeites do cabelo e muitos livros de história para ler à noite. Tudo pronto. Na boleia do caminhão do meu tio Pio, rumo a mais um mês de férias, com ela!

A casa da tia Ruth era uma casa comum. Um casarão antigo que me encantava. Era um sobrado, pintado de amarelo claro, com janelas enormes, na cor grená. As altas e largas portas quase nunca eram trancadas. O piso, de madeira, tábuas largas que choravam quando pisadas. O fogão de lenha. O quintal enorme, com muitas mangueiras e o rio lá no fundo.

Era um paraíso para uma criança que como eu, vivia em uma cidade metalúrgica com chaminés cuspindo fumaça colorida o dia todo e as casas dos operários, todas muito parecidas, sem a menor graça. Nunca gostei do moderno. Desde muito cedo só o antigo me encantava e pela vida afora continuei sempre adorando arquitetura antiga, enfeites antigos, paninhos bordados pra engomar, peças de antiquário, fotos antigas…

Entretanto, o mais importante para mim, era dormir junto com a titia. Em sua cama usávamos um edredom, surgido àquela época, que se chamava Sono Leve. Antes de dormir, já de banho tomado, ela me trocava a roupa, colocava a camisolinha, trançava o meu cabelo e íamos ver TV, ainda em preto & branco. Novela, show de dança ou um programas humorísticos. Eu dormia sempre, muito rápido. Não me lembro de quando era levada pra cama.

Ao acordar, a mágica era olhar pelo buraquinho da janela e ver tudo embaçado, branco de neblina, mesmo no verão, devido à proximidade com o rio. A cidade sempre imersa em forte cerração, não permitia ver mais que uns poucos metros à frente. Eu me levantava, vestia um casaquinho de flanela e ia pelo quintal até chegar aos fundos, saindo na beira do rio. Podia-se ouvir o barulho da água, a correnteza. Ver um barco surgindo com um ou outro pescador que se arriscava por ali. 

Aquele quintal era a minha selva. As árvores carregadas de mangas carlota, devoradas antes mesmo de serem lavadas. O caldo amarelo escorrendo pelo braço. Lambidas inocentes, sem nenhuma culpa. No quintal havia ainda uma gangorra. Uma pequena tábua com longas cordas amarradas ao braço da mangueira. Era muito bom sentir a liberdade de brincar sozinha mesmo arriscando-me a virar, tamanha força eu colocava no impulso, ao empurrar o balanço. Passava horas brincando e cantando enquanto ia pra lá e pra cá.

Perto da gangorra havia um forno de barro onde a minha tia preparava um doce árabe chamado raha locum. Era feito num tacho enorme de cobre que me era dado a rapar: rapar o tacho como se dizia então. Do caderno de receitas eu lia o modo de fazer: misturava o amido de milho (Maizena) com água fria. No tacho colocava-se o suco de laranja, o açucar e água.

Quando fervesse colocava então a Maizena dissolvida. Fervia, engrossava, tirava do fogo e só então acrescentava-se o suco de limão e a água de rosas, encontrada só nas lojas árabes, na capital. Era uma tortura esperar que aquilo esfriasse. Só depois de bem firme é que podia ser cortado em quadradinhos e passado no açúcar de confeiteiro. Até hoje me lembro do gosto e do cheiro maravilhoso daquele doce árabe! Ah, e um pouco de anilina rosa pra dar um colorido delicado e atraente.

A minha tia era a dona de um hotel na cidade. Assim, promovida à sua ajudante master, eu ajudava a recolher o lixo, a colocar num saco a roupa de cama usada e a espanar o mobiliário dos quartos. Depois empurrava escada abaixo, a roupa suja que ia formando um amontoado de branco: lençóis, fronhas, colchas piquet e toalhas. Nada colorido, tudo branquinho – sinal de capricho, ela dizia. 

Grudada nela o tempo todo enquanto a empregada varria, passava pano, tirava o pó, trocava os lençóis brancos, feito pássaros enormes a voar sobre os colchões. A manhã passava bem depressa e logo era hora do almoço. 

A comida da casa da tia era deliciosa. Feita em fogão de lenha, tudo era muito saboroso. A panela do feijão era colocada bem cedo no fogo para que estivesse cozido na hora do almoço. A carne de panela também era lentamente cozida e o sabor inigualável. Eram da minha responsabilidade ações importantes: colocava a toalha, os guardanapos, os talheres, os suportes de travessas. Cortava o pão de sal em fatias, enchia os potinhos com manteiga e em cada mesa colocava o joguinho com azeite de oliva e vinagre. E o paliteiro não podia ser esquecido!

O melhor do almoço era a sobremesa. Podia ser melado de rapadura com queijo fresco. Podia ser arroz doce com paus de canela perdidos naquela delícia. Podia ser salada de frutas. E o melhor de tudo: podia ser uma ida até a padaria do Zé Lourenço para tomar sorvete de creme na casquinha, ou no copo, batido com Crush. Não tenho certeza, mas me parece que se chamava Vaca Amarela.

A tarde demorava a passar, mas eu tinha ainda outros tesouros a explorar. O guarda roupas da titia era uma fonte inesgotável de novidades. Um tamanco Carmen Miranda, que me servia, pois o meu pé era crescido e ela, pequenina, tinha um pezinho de nada. Eu adorava os saltos altos e aprendi a me equilibrar sobre eles, dançando ao som das músicas no rádio. Havia saias rodadas, de babados que eu prendia com alfinetes para que me servissem na cintura. Havia lenços de cabelo, coloridos.

Como toda semana ela arrumava o cabelo no salão, os lenços protegiam o cabelo enquanto ela dormia e assim, não se estragava o penteado – penteado duro de tanto laquê, hoje chamado spray! E eu me divertia com tantos lenços. Às vezes me metia à dançarina árabe e colocando a ponta dos lenços, no elástico da calcinha, rebolava imitando a dança dos sete (!) véus… ríamos muito, as duas.

A penteadeira era composta por três espelhos: um maior, central e dois outros menores que se moviam e permitiam ver as costas, a nuca, um luxo. Sobre a penteadeira bibelôs, pequenos enfeites e um vidro de perfume francês, num frasco redondo, que nunca mais esqueci. Je Reviens era o nome e muitos anos depois, em todo free shop por onde eu passava, ia logo perguntando na tentativa de encontrá-lo. Queria, de novo, sentir aquele cheirinho que nunca mais senti.

Algumas vezes por semana era possível ir ao clube Minas, nadar e se bronzear ao sol. As tardes eram muito quentes, mas quando o sol se punha esfriava bastante e não dava pra ficar sem o casaquinho de flanela.

Havia ainda outro atrativo: em algumas manhãs, bem cedinho, havia matança de bois no matadouro, no mesmo quarteirão onde ficava a casa/hotel. Eu saía sozinha, ainda meio sonolenta, antes do café. Sentadas nos bancos de madeira – que mais pareciam arquibancadas de circo – outras crianças também queriam assistir ao show. Eu sentia uma pena enorme dos animais. Ouvir os seus berros era algo que me deixava com o coração disparado. Então, cobria o rosto com as mãos deixando apenas um dos olhos de fora. Assim sentia uma aflição menor…e uma culpa bem pequeninha.

Havia, àquela época, uma orquestra muito famosa, chamada “Casino de Sevilla”. Naquele tempo, era comum que artistas bem conhecidos, famosos, se apresentassem em bailes nas cidades do interior. Assim, mesmo pequenos municípios como Nova Era, recebiam gente famosa e o melhor, hospedavam-se no hotel da titia. Esta é a melhor parte: quando chegou o ônibus com a turma do show foi uma agitação só!

Famosos, falando português com muito sotaque, querendo não-sei-lá-o-quê, a comunicação era muito difícil! Só sei que tivemos que sair da cama de casal para que a cantora, enorme de gorda, pudesse lá se instalar. Morri de ciúmes quando lhe foi dado o Sono Leve, que eu achava que também me pertencia. Morta de ciúmes, vi a cama sendo arrumada, toda em branco, com passa-fitas, rendas, tira bordadas, coisa fina, só pra visita! 

Outro famoso que por lá passou foi o Caubi Peixoto (quem se lembra dele?) Por ser homem, magro e fumante, dormiu no quarto comum, lá no andar de cima. Dizem que o Yvon Curi (alguém sabe quem era?) também passou por lá, mas aí eu não estava presente e nada posso falar nada. Dizem que a Elza Soares também apresentou seus sambas no Automóvel Club…

A pandemia dificultou e quase proibiu uma nova ida ao Rio para visitar minha tia Ruth. Entretanto, nos “falamos” pelo menos uma vez por semana, com a ajuda da Ana, sua cuidadora, muito carinhosa e dedicada. Aos domingos, tenho uma coluna no blog oficial do jornal Estado de Minas, o Mirante. Envio as publicações para Ana que lê e as repassa para titia. Ela ouve, grava um áudio no celular da Ana e então recebo seus comentários. Às vezes dou gargalhadas com suas piadinhas. Ela sempre muito lúcida, apesar da voz cada vez mais fraca e a audição quase totalmente perdida.

É um amor imenso que ainda se mantém. Resistiu ao longo do tempo e às distâncias que nos separaram. Lembro-me com ternura imensa das nossas férias juntas, em Minas, durante toda a minha infância. Nosso convívio muito próximo quando já casada, fui morar no Rio de Janeiro. E morava na Tijuca, bem perto do seu apartamento. O tempo foi passando. A vida tomando seus rumos e depois de sete anos, voltei novamente pra BH. Fui, a trabalho, para Londrina, no Paraná. Voltei mais uma vez para BH.

Fui morar no Rio Grande do Sul e sempre que dava passava, pelo menos, três a quatro dias no Rio, com ela. Sempre que posso dou um pulinho até lá para apertar aquelas bochechas rosadas e enchê-las de beijos. Abraços apertados, muitos. Risadas, o tempo todo. Muitas lembranças e muitas gargalhadas. Sempre tem sido uma alegria imensa para nós duas.

 – Não sei quando nos veremos de novo. Aos 98 anos, no grupo de risco não posso querer “apenas” vê-la. Sem poder abraçar, que graça tem? Por isso esse recadinho saudoso por tudo que vivemos juntas, ou separadas, à distância.

Te amo muito, titia, você sabe o quanto!

Te cuida, fique bem e vamos torcer pra esse corona vírus ir logo pra p q p !!!

Te beijo com um amor imenso e um agradecimento sem tamanho por tudo que você fez por mim: das tranças no cabelo à comidinha boa, passando pelas roupas lindas, pela invasão permitida ao seu guarda roupa, pelas gotinhas do seu perfume francês, por seu colo sempre quentinho e disponível. Por seu carinho, seu afeto, seu amor por mim! Obrigada mesmo, por tudo!

Vamos torcer pra que logo, logo a gente possa, de novo, se abraçar!!

Com meu amor e todo meu carinho!

Zanzinha

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  • Tive a oportunidade, em minha vida, de conviver com essas quatro mulheres FORTES e MARAVILHOSAS.... com a mais nova, que até hoje me trata de Doce, Zanza ou Zanja(como a chamava Tia Luzia), tivemos dois LINDOS filhos, Léo e Gui. Minha Sogra, Dna Farid era uma alegria só, as gargalhadas dela me extasiavam, além de fazer a melhor couve que já comi na minha vida, pacientemente cortada pelo Seu Tatão, tão fina como um fio de cabelo, plantada em sua pequena horta no fundo do quintal. Tia Luzia, no bairro São Pedro, com seu bandolim era só alegria, com sua voz rouca e também com uma gargalhada farta e deliciosa e Tia Ruth em seu apartamento na Tijuca, inteligente, culta, simples, sempre sorrindo. Acho que esse é um ponto forte nessas mulheres, a ALEGRIA.

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