Rosangela Maluf
A chegada do Circo Nerino naquela cidadezinha do interior de Minas Gerais era muito mais do que um grande acontecimento. Era uma festa, e a certeza de pelo menos três meses de espetáculos nas tardes de domingo. O comentário no colégio era um só: as crianças em um único desejo, assistiriam às matinês do circo. A semana nem bem começava e já implorávamos pela chegada do próximo dia de função. E o comportamento era exemplar para que pudéssemos merecer o desejado presente.
Os domingos passavam então a contar com uma programação comum a todos nós: a missa das nove horas, na matriz de São José Operário, e a invariável passagem pelo Grêmio Esportivo. Depois íamos para casa, para as refeições em família, o tradicional almoço de domingo. Um pequeno descanso para fazer a digestão, o banho caprichado e a roupa nova e bem passada para estar no circo, pontualmente, às 15h30.
Dava um frio na barriga pensar em tudo o que estaria à nossa disposição para ver, ouvir e sentir: o colorido das barraquinhas, os grandes pacotes de pipoca quentinha e cheirosa, a brilhante e vermelha maçã do amor; pirulitos de açúcar queimado no tabuleiro de furinhos e a lona do circo, enorme, majestosa, cobrindo tudo. Dava gosto ver o picadeiro com a cerquinha de madeira e, as cortinas grenás no palco por onde entravam e saiam os artistas.
Na lateral, uma pequena orquestra dava ritmo aos números musicais. As bailarinas, com suas pobres roupas coloridas, nos transportavam para outros mundos, bem diferentes do nosso dia a dia. Os animais desfilavam lentamente. Até podíamos sentir o mau cheiro que emanava dos pobrezinhos. Conhecemos os macaquinhos de roupa e chapéu, o leão que nunca rugia, um tigre já bem velhinho e um urso que até hoje fico na dúvida se era de verdade ou não! E o elefante? Velho, sujo, cansado, com uns panos coloridos sobre o lombo e um banquinho com um anãozinho sentado, dando adeus! Tudo nos parecia mágico e lindo…
Entretanto, havia algo sigiloso, quase um segredo: o comércio velado de pequenos bichos. O circo comprava gatos e cães para alimentar os seus animais e pagava por cada bichinho o equivalente a uma entrada para o espetáculo do domingo. Os meus amigos que participavam desse estranho negócio me faziam jurar de pés juntos que eu jamais contaria para ninguém este segredo – para ninguém! E eu nunca contei.
Ficávamos sempre nas arquibancadas. Eram mais baratas que os camarotes e, do alto, assistíamos, juntos, aos números de trapézio, do Globo da morte, além dos palhaços que nos faziam dar risadas o tempo todo. Muitos números interessantes, muitos artistas, tudo nos encantava. A música da bandinha, sempre o mesmo parampampam. O palhaço que cantava, contava piada e perguntava mil vezes: – e o palhaço o que é? E nós, aos berros: – é ladrão de mulher! Mais risadas. As trapezistas, com os maiôs bordados de paetês, coloridos, brilhantes, nos deixavam sem ar. Eram lindas naquele vai e vem que precedia os saltos. Frio na barriga!
Naquela temporada um novo número chamou-me a atenção. Até então nunca havia visto um artista se equilibrando no arame. Foi anunciado, com toques de caixa-clara e tarol, e ele surgiu: Douglas e sua habilidade no fio de metal bem fino. Meu Deus do céu. Não consigo descrever o que senti naquele dia ao vê-lo. Era um rapaz ainda bem jovem. Pelo menos foi o que me pareceu. Moreno, cabelos anelados bem escuros, não muito alto, magro e com olhos verdes, lindos olhos verdes.
Confesso que quase não vi o que ele apresentava. Tão maravilhada fiquei que não despregava os olhos daquele príncipe. Sim, estava vestido como um príncipe. Camisa branca, aberta no peito, com longas e largas mangas. Uma calça preta, bem apertadinha. Um cinto bordado, brilhando muito, bastante largo. E sapatilhas, pretas, daquelas de ballet. Não falei para ninguém da minha paixão repentina. Não comentei com ninguém, nem com a minha melhor amiga.
De volta para os meus dias normais, escrevia o seu nome em todos os meus cadernos. Com a letra bordada, com o maior capricho, colorindo a folha e enchendo-a de coraçõezinhos. Depois apagava com receio de que alguém lesse aquilo. Permanecia em silêncio, pensativa, mas me lembrava dele todos os dias da semana, ficando aflita para que chegasse o próximo domingo.
Às 14h30 do outro domingo lá fomos nós. A família inteira iria assistir ao maior espetáculo da terra. Meus irmãos riam dos palhaços. Um frio na barriga, com receio de que algo acontecesse aos trapezistas, número preferido da minha mãe. Mas o ponto alto era o Globo da morte. Dois motociclistas se cruzavam em uma bola de metal, em alta velocidade. O risco de colisão era mesmo muito grande. A música parava. Os cantores se calavam. Todos se mantinham quietos e silenciosos até que a dupla desligava os motores, abria a portinha de metal e saiam os dois para os muitos aplausos. O meu pai adorava este número e os meus irmão também.
Mas o que me emocionava mesmo era ver o Douglas se equilibrando no arame. Não sei o que acontecia comigo, mas minha boca secava. Minha barriga doía. Não dizia palavra e nem aplaudia. Ficava estarrecida vendo aquele ser de outro mundo, lindo, tranquilo, muito sereno, olhando apenas para baixo, para o fio de arame, o tempo todo. Falei pra Elisa: – Quero me casar com este moço. – Ela riu e perguntou se eu estava louca. – Como, se você nem nunca namorou? – Nada mais eu disse.
À noite, deitadinha em minha cama, eu lamentava ter apenas nove anos. Se fosse um pouco mais velha poderia fugir com o circo. E se eu criasse coragem, como seria? Não fazia a menor ideia. E se eu tentasse escondida, calada, sem comentar com ninguém? Uma mala pequena. Quem teria uma mala pequena para me emprestar? A minha mãe tinha malas enormes onde cabiam as roupas de toda a família para a ida à praia, nos meses janeiros. E constato muito triste que nunca tivera uma mala só para mim. Como fugir então?
Escrevi um bilhete. Não sabia como iria entregá-lo. O circo permanecera acampado, no estádio de futebol, por três meses. Na próxima semana já eram anunciados, pelo carro alto falante, os últimos espetáculos. O que eu precisava fazer? Dizer o quê? Quem levaria o bilhete? Como confiar que a pessoa não iria ler e contar pra minha mãe? Contava para Elisa ou não? E se alguém desconfiasse? O que seria de mim? Meu Deus.
Resolvi eu mesma levar o bilhete. Escrevi em um papel de carta, um recado. No papel pautado desenhei e colori nuvens cor de rosa. Bem simples. Curto. Eu queria muito ir embora com o circo. Douglas. Eu queria muito ficar com ele para o resto da minha vida. Douglas. Eu queria que ele soubesse que era o meu primeiro e grande amor. E assim escrevi. Coloquei num envelope branco. Subscritei o envelope: para Douglas, o equilibrista – Circo Nerino – João Monlevade – Minas Gerais.
O circo estava escuro. Meu coração disparado não me deixava respirar direito. Atravessei a plateia. Aproximei-me do picadeiro. Chamei o palhaço Picolino pelo nome. Ele se aproximou. Entreguei o envelope. Ele abre a carta que escrevi. Aproxima o megafone da boca vermelha. Lê em voz baixa e fala bem alto: Atenção! Uma garota me entregou este envelope, e balança a carta na mão direita enquanto com a outra segura o megafone e fala bem alto:
“ – Douglas, meu amor”. Aqui ela diz que quer ir embora com o circo. Ela diz também que está apaixonada. Ohhhhhh. Sabem por quem? Pelo Dooooooouglas, o equilibrista. Vejam só, senhoras e senhores. Quem é a Cinderela? O nome dela é…. não vou dizer. A mãe dela tem uma loja. Uma loja na mesma rua do Ginásio de Tábua. Alguém me contou que ela tem dois irmãos muito bravos. O nome dela é…
Acordei ensopada de suor. Por pouco não faço xixi na cama. Respiro com dificuldade, sinto falta de ar e ao mesmo tempo alívio por ter sido só um sonho. Levanto-me com cuidado. Nem sei que horas são. Pego, no livro de leitura o envelope branco. Rasgo em muitos pedacinhos. Vou ao banheiro e jogo no vaso. Puxo a cordinha duas, três vezes até que a pouca água leve embora o resto da minha declaração de amor. No espelho vejo a minha cara de susto. De medo. De aflição. Falo pra mim mesma que gente de circo, nunca mais. Não pode mesmo dar certo. Constato, com tristeza infinita, que sou apenas uma criança. Uma menina.
Vamos todos à última apresentação na cidade. Fico lá na frente, junto a tantas outras crianças. Assisto com tristeza o encerramento do espetáculo. Todos os artistas juntos, desfilando em círculos pelo picadeiro. De repente, ganho uma flor. E ele continua desfilando, acenando para a arquibancada lotada. Olho a flor, um crisântemo amarelo. Meu coração dispara. Discretamente beijo a flor. Quero chorar, mas não tenho coragem. Quero gritar, mas só falo baixinho: Douglas, meu amor!