Cutting: quando a dor de dentro é maior que a dor de fora

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Daniela Piroli Cabral
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“Se a dor não ressoa em ninguém, ela se mantém no próprio sujeito e é

redirecionada para o corpo próprio” (Birman, 2003).

 

Cutting ou comportamento de automutilação é definido como um tipo de comportamento autolesivo que abrange a destruição do tecido corporal de si próprio, incluindo cortes (self-cutting) e comportamentos associados (arranhões e queimaduras). Trata de um problema de saúde mental global e de elevada prevalência entre os jovens. Estudos sinalizam que entre 7 e 35% dos jovens apresentam este problema.

Geralmente, os corte autodirigidos são feitos com estiletes, lâminas de barbear e de apontadores de lápis, facas, tesoura, compasso, cacos de vidro, e envolvem a relação entre o corpo e a expressão do sofrimento, mas não necessariamente a intenção de se matar. Sentimentos como raiva e hostilidade, ausência de esperança no futuro e tristeza estão associados à violência autodirigida. Muitas vezes o jovem não demonstra angústia ou dor no ato de se auto mutilar, sendo que o alarme acontece somente quando a escola ou algum familiar percebe e se preocupa.  

Historicamente temos referências destes comportamentos na bíblia, em fontes literárias e artísticas e em registros de casos clínicos. No entanto, vem aumentando o interesse social, clínico e científico sobre o tema, especialmente relacionado à adolescência.

Há algum tempo, acompanhei o caso de uma jovem que se cortava usando o estilete escolar, tendo chegado a talhar seu próprio nome no seu antebraço. Ela vivia usando moletons de manga longas, que encobriram as feridas e os cortes por mais de 9 meses, momento em que é encaminhada à psicoterapia. Durante o processo, me confidencia que havia sido estuprada aos 13 anos, em sua cidade natal, e nunca havia contado para sua família, pois seria julgada por seu pai machista e por sua mãe conservadora e omissa. Neste momento, verbaliza com forte emoção: “Me corto assim porque a dor de fora ameniza a dor de dentro”.

Aqui, vê-se que a dor física, direta no corpo é concebida como mais tolerável que a dor psíquica decorrente da violência sofrida sendo também um meio de apaziguá-la. Diante do impossibilidade de fala e do isolamento decorrente da violência sofrida, a jovem encontra a saída da automutilação, “que representa o fracasso da palavra em sua potencialidade de conexão com o outro” (Fortes; Macedo, 2017).

Não quero dizer aqui que todos os casos de automutilação representam um caso de violência extrema como este, mas sim uma tentativa de controlar a dor interna que, por diversas circunstâncias pode se tornar “insuportável”. Ao se provocarem a dor através dos cortes, os sujeitos retomam o controle de um afeto destrutivo que lhes atravessa, buscando um modo de domínio sobre a situação que lhes escapa totalmente ao controle (Le Breton apud Fortes; Macedo, 2017).

Diante disso, é preciso enfatizar a necessidade da busca de novos contorno e sentidos através da via da palavra e de alternativas mais saudáveis para a ressignificação da dor. Além disso, frente a nossa vivência social contemporânea em uma sociedade cada vez mais narcísica em que há o arrefecimento das relações com o outro, em que não há campo disponível para o reconhecimento da dor do outro, em que a quebra da experiência da alteridade (Fortes; Macedo, 2017) se faz presença constante, temos que pensar realmente que casos como este serão infelizmente cada vezes mais comuns.

 

Fontes:

 

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