Alquimia doméstica

Peter Rossi

Tempos atrás existiam menos remédios e mais alquimia. Deitado no sofá vem na minha narina o cheiro do “vick vaporub”. Era uma pasta meio grudenta que nossas mães esfregavam em nosso peito, sob os pijamas de flanela quando dava da gente tossir demais. Vinham em latinhas, salvo engano verdes e azuis, com letras em vermelho.

Pijamas de flanela… Será que não existem mais? Eram sempre coloridos, de mangas compridas e calça com elástico. Muito macios, os pijamas nos acariciavam o corpo, nos envolviam sob o edredom. Vinham sempre com estampas de bichinhos ou de heróis. As cores, sempre muito vivas! Tinham bolsos os pijamas, embora sem qualquer utilidade, afinal, quem dormiria com alguma coisa no bolso? Enfim …

Não vejo mais pijamas de flanela por aí. Será que o frio não é mais o mesmo? Foram eles as primeiras vítimas do aquecimento global? Bem, não sei. Fato é que encontrar um pijama de flanela por aí é tarefa das mais difíceis. E olha que tínhamos vários. Eram feitos em casa, geralmente pelas mãos de nossas mães. A gente ficava em pé e nossa mãe com uma fita métrica em volta do pescoço nos media todos. Ia anotando num bloco cada uma das medidas. Em seguida tirava da última gaveta da cômoda os chamados moldes. Eram pedaços de papel manteiga, ou feitos de papel de embrulho. Escolhia aqueles que mais próximos eram do nosso tamanho, estendiam o papel sobre a flanela e com uma tesoura enorme cortavam, certinho, seguindo as linhas desenhadas com um lápis que mais parecia um sabonete. Montavam as partes do quebra-cabeça com simples alinhavo e nós os vestíamos com cuidado para não soltar nenhum pesponto. Estivessem certas as medidas, em poucas horas e após umas pedaladas na máquina de costura, recebíamos nossos pijamas novos.

Pois bem, era com a camisa do pijama aberta que recebíamos o grudento “vick vaporub”. Mas era tão bom! O cheiro simplesmente entrava em nosso nariz e grudava no fundo da nossa memória. Nos abraçava e a tosse diminuía porque dormíamos felizes. Na verdade, conheci muitos meninos que fingiam estar com tosse só para receber uma esfregada de “vick vaporub” da mãe. Era um carinho, com um cheirinho maravilhoso.

Se o problema do menino fosse uma dor de garganta daquelas que até respirar doía o remédio era outro. As mães faziam um mingau grosso de farinha de trigo, enrolavam num pano de prato como se fosse um rocambole fino e ainda quente, porém sem pelar, enrolavam em nosso pescoço. Era tiro e queda! A gente suava pra caramba mas aquele grude quente acabava por derreter o que nos incomodava. A garganta começava a melhorar e, a menos que nossas mães fizessem alguma mágica enquanto dormíamos, posso dizer que a eficácia do remédio era plena. Acordávamos sempre melhores. Meninos tem essa vantagem. Acreditam piamente que as mãos de mãe são mágicas e, com isso, mágicas aconteciam mesmo…

Esses são exemplos de uma alquimia doméstica em que meninos corriam mais, caíam mais, e ainda assim saravam mais depressa.

Era uma época em que o mertiolate ardia muito. Ele vinha num vidrinho escuro e, colada na tampa uma pazinha sempre submersa, toda quadriculada. Bastava desenroscar a tampa e a pazinha surgia molhada. Nossas mães passavam com cuidado em nossos joelhos ralados e de imediato exalavam um sopro mágico. O ardor passava num segundo, e em alguns minutos estávamos nós a correr novamente.

Dia desses passando por uma farmácia vi a propaganda de um mertiolate a gabar-se de que não causava nenhum ardor. Confesso que desconfiei de imediato. Que tolos os meninos de hoje: trocam a falta de ardor pela ausência de um sopro de mãe. Mertiolate tinha que arder, se não ardesse era mercúrio cromo, e pronto!

Se não fosse tosse da brava nem dor de garganta, mas apenas um ronronar, nossas mães mágicas tiravam da cartola não um coelho, mas um travesseiro.

Pela manhã íamos pro mato a colher macela. Enchíamos sacos com aquelas florezinhas. Nossas mães as deixavam secar, esparramadas em tabuleiros no quintal. No dia seguinte, costuravam travesseiros, pequenos retângulos e recheavam com a macela. Eram os travesseiros de macela! Dormir com a cabeça sobre eles era algo muito gostoso. Macios, aconchegantes e, além de tudo, exalavam um cheirinho de erva fresca que hoje fica no passado. Segundo nossas mães, logo logo parávamos de ronronar.

Outro santo remédio era o bicarbonato. Esse aí servia pra muita coisa. Se mordêssemos nossas ágeis línguas, bastava mergulhar um cotonete na caixinha de bicarbonato e passar na ferida. Alívio imediato! O mesmo tratamento era usado quando desandávamos a comer abacaxis, daqueles vendidos na carroceria de um velho caminhão. Nossa boca se enchia de aftas. E dá-lhe bicarbonato!

Se, por acaso, a gente comia mais do que precisava. Se comia com os olhos e tínhamos a sensação que íamos explodir, o bicarbonato entrava de novo em ação. Duas colheres de café do pó em meio copo de água. Bebíamos num só gole e ficávamos a bater levemente na barriga até que nosso desconforto fugisse com um estrondo de nossa boca, como um balão de gás a se esvaziar.

O bicarbonato, com certeza, devia fazer parte do cinto de utilidades do Batman. Era inconcebível imaginar um herói que prestasse sem esta arma tão poderosa.

Nossas mães se valiam do mel quando a gente machucava e as feridas se abriam. Algumas gotas de mel, a proibição para que não lambêssemos, se conseguíssemos alcançar o local machucado e no dia seguinte uma casquinha já começava a aparecer.

Enfim, nossas mães, verdadeiras bruxas ao redor do caldeirão a usar de coisas simples para resolver coisas simples. Uma vida equilibrada em sua singeleza. Machucar era normal. Ficar íntegro é que não era. E a gente machucava mesmo, até porque sabíamos que rapidamente nossas feridas seriam curadas por nossas mães.

Com o passar do tempo os machucados passam a ser outros. São invisíveis, a gente não consegue enxergar. Vivem dentro da gente. Que coisa idiota abdicar de joelhos ralados, topadas de dedos, e passar a sentir uma dor sem razão aparente. E para essa dor, nossas mães não têm remédio. Seus poderes são limitados.

Essa é uma escolha absurdamente boba. Se não for uma escolha, pelo menos um consentimento. E pensar que reclamávamos do mertiolate …

Nossas dores, hoje, não mais se curam com o esfregar de uma pazinha quadriculada seguida de um sopro de mãe. Não, hoje elas chegam sorrateiras e nos jogam pra escanteio sem que a gente se dê conta sequer de como tudo começou. A angústia pousa em nossos ombros e passamos a achar que a vida não vale a pena, que o dia é sempre cinza.

Esses machucados sem qualquer razão de ser, sem começo definido e sem fim consentido. Que bobagem tudo isso, que perda de tempo e de oportunidade. Viver há de ser em completude. Vale a dor, salvam-se as lágrimas e, sobretudo, a crença de que sempre existe um remédio.

Mas, apesar de tudo, a vida vale sempre a pena! Nem que seja pra gente lembrar que um dia sentiu ardor de mertiolate e, na falta de mãe, com os olhos fechados, o melhor é esperar a saudade soprar.

Um comentário sobre “Alquimia doméstica

  1. Nossa,vc nos fêz recordar de momentos especiais da nossa infância.
    Faltou vc mencionar o óleo de fígado de bacalhau. Meu Deus como era horrível aquele sabor!! Nossa mãe tambava o nosso nariz para podermos engolir aquele purgante .
    Ela falava é ruim mas é bom para crescerem fortes. Muitas recordações.

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