A lareira

Peter Rossi

Ainda menino morava numa casa grande, cedida pela mineradora a alguns de seus empregados. Meu trabalhou na empresa por longos e longos anos.

Era uma casa branca com debrum em azul em torno das janelas e das portas, e nas entrelinhas da varanda.

Me lembro bem do quarto que dividia com um dos irmãos, que ficava na extremidade final da casa. Me recordo, ainda, da cozinha. Existia ali uma porta que se dividia ao meio, mas na horizontal, de modo que minha mãe podia espichar o corpo e, lá de dentro, espiar o que fazíamos no quintal.

Quando um irmão foi viver distante, passei a ocupar seu quarto. Era meu esconderijo, minha caverna do Batman. Eu organizava tudo direitinho. Encapava meus livros com papel jornal e do lado de fora, com uma caneta hidrocor azul e uma caligrafia de menino, anotava os nomes das obras. Colocava cada uma ao lado da outra, em ordem alfabética.

Me lembro de uma escrivaninha antiga, pintada de vermelho com tinta a óleo. A sua tampa, em perpendicular, aberta servia de tampo, como uma mesinha.

Eu adorava sentar ali diante. Por dentro, diversas gavetas e nichos. Guardava os selos, os cartões postais, os chaveiros e os calendários, esses últimos também perfeitamente organizados.

Como naquele mundo tão pequeno cabia tantos sonhos… Eu adorava ficar ali. Minha vitrola e os discos que na época eram apenas os de vinil. Todos eles com capas de plástico transparente, também guardados em ordem alfabética.

Meu violão, que por tanto e tanto tempo foi meu confidente e melhor amigo. Quantas vezes me vi abraçado a ele e de olhos fechados me apaixonava, um dia depois do outro.

Também me lembro da varanda, que abria um largo sorriso para um jardim muito bem cuidado e, abaixo do talude, um campinho de futebol.

Naquela casa estava também o meu laboratório. Era um brinquedo que se chamava Laboratório Químico Juvenil. Como um druida, um alquimista, mistura os produtos químicos e obtinha líquidos multicoloridos, às vezes com odor intragável.

Porém, o mais interessante é que minha memória não me remete aos demais ambientes da casa. Muito esquisito, mas não tenho nenhuma recordação da sala, por exemplo.

Chegou um tempo que a família teve que deixar a casa e nos mudamos para outra menor, no mesmo estilo. Lá também fui feliz. Aliás, naquele tempo ser feliz era mais fácil. Nos bastávamos e a vida seguia lenta. Um tempo em que não existiam tantas exigências e um bom motivo pra sorrir era a presença do sol.

Nessa casa existia uma lareira. Me lembro que quando foi reformada, para que lá mudássemos, o pedreiro quebrando o acabamento, me chamou para ajudá-lo a assentar os tijolos à vista que a cobririam.

Trabalhei com todo carinho, imaginando estar sentado por perto do fogo, em conversas animadas com meus pais.

Ia colocando, um a um, os tijolos sobre a camada de massa. O pedreiro, em seguida, cuidava de alinhá-los com cuidado. Demorou um dia a tarefa, mas, ao final, tínhamos uma bela lareira revestida de tijolinhos.

Sei que na casa antiga devia ter uma lareira, até porque ambas eram do mesmo estilo arquitetônico, mas não consigo me lembrar como era.

Enfim, conto essa história não só para lubrificar a minha emoção, remontando a momentos outros que, apesar de não poderem ser alcançados, ainda acomodam nossa memória e nosso coração como se um travesseiro de plumas fossem.

A tal lareira, ao que me consta, nunca foi usada. E olha que a temperatura na minha cidade natal durante o inverno sempre foi baixa, muito mais fria que na capital.

Enfim, escrevo esse texto a pensar que aquela afirmativa de que planejar a viagem é tão ou mais agradável que a viagem em si é absolutamente verdadeira. A minha imaginação ao ajudar no acabamento da lareira me levou a noites frias de inverno, com um cobertor enrolado, durante momento extremamente prazerosos. Dessa forma imaginei, embora jamais tenha ocorrido.

Mas valeu a pena, mesmo assim!

A lareira continua no mesmo lugar e, ainda que inerte, continua a aquecer minhas lembranças. Consigo até ouvir os tremeliques da lenha sendo queimada e ver as faíscas que voam como estrelas no céu daquilo que chamamos saudade.

3 comentários sobre “A lareira

  1. Que texto mais lindo: pura memória afetiva !! Fiquei curiosa pra saber aonde fica esta casa , a primeira cedida pela mineradora .

  2. Imaginei cada cena com as suas palavras mencionadas com tamanha precisão.
    Tantos valores afetivos, que deu vontade de sentar perto da lareira enroladinha numa manta,ouvindo lindas histórias igual a sua.

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