Peter Rossi
Quantos “eus” cabem dentro de nós? Quantos cabem dentro de cada um?
Assistindo a um peça de teatro e escutando um texto simplesmente maravilhoso, me veio a indagação.
Nós, a bem da verdade, somos verdadeiros caleidoscópios. Eterno curioso que sou, fui pesquisar e descobri que a palavra caleidoscópio significa observador de belas coisas. A junção das seguintes palavras gregas: kalos = belo, eidos = forma, scopeo = observar. A definição é absolutamente coerente. Aliás, as palavras desenham os sentidos e além de ouvir, conseguimos visualizar o que pretendem dizer. Nesse aspectos, aqueles gregos foram especialistas.
Enfim, mas falava sobre as variáveis que nós mesmos ajustamos nas dobras dos nossos corpos, sejam eles franzinos ou não. Existe um verso que diz: “amar nunca me coube, sempre transbordou em mim”. Ele sintetiza essa visão.
Vamos nos amoldando, amalgamando face as diversas situações vividas e, como o virar dos cacos coloridos frente aos espelhos do caleidoscópio, as paisagens se descortinam, as mais variadas.
E viver é bem isso: abrir as janelas a cada dia e admirar uma paisagem diferente, mergulhando os pensamentos naquela visão estonteante.
Aprendemos a ser resilientes, irresignados, calmos, agitados, crianças, velhos cansados, tudo ao longo da mesma existência.
E é aí que reitero a pergunta: quantos “eus” cabem dentro de mim?
Percebo que são vários, foram tantos e outros tantos ainda se amoldurarão. Ainda ouvindo o texto da peça teatral vou construindo o pensamento, organizando as ideias, e percebo que isso é tão evidente que não paramos para avaliar ou matutar sobre.
As várias facetas são inerentes à alma humana. Somos os anti-heróis às avessas, destruindo os inimigos que cuidamos de inventar.
E o mais interessante é que isso não significa desvirtuar-se de uma linha de conduta, embora nada demais se ela não for absolutamente uma linha geométrica. Isso significa que podemos até ser coerentes (embora a tarefa seja árdua, reconheçamos), mas os vários formatos das paisagens nos ajudam a criar anteparos a nos permitir a submissão a determinadas situações sem que isso represente o fim dos finais.
Nada disso, o que fazemos, nesse momento, é aprender a aprender. E aprender, meus amigos, é o grande barato da vida. Preencher nossa mente com a satisfação da plena curiosidade causa um êxtase dos mais desejados.
Me convenço que a cada dia uma silhueta de mim é colada sobre a anterior e, como as páginas de um livro, se sobrepõem sem apagar as palavras das folhas que antes vieram se alojar ali. Esta superposição bem merece o nome que tem: é super! Uma silhueta após a outra, uma página repousando inteiramente sobre a que lhe antecede. Respiram juntas e a miscelânia de informações é que molda o viver.
As experiências incontidas, mesmo as mal resolvidas, cuidam de semear novos grãos e com eles saciar nossa fome sobre a forma de dúvida. O que fazer? Como encarar tal situação? É a nossa história que responde a esses questionamentos. O que somos são avatares recolhidos à sombra da nossa pele, ora esticando, outras vezes se recolhendo num abraço de saudade.
E assim seguimos. Uma vida após a outra, um dia que nasce, uma noite que adormece e morre, para no dia seguinte persistir na tentativa de continuar nos seduzindo.
Corremos tanto em determinadas ocasiões que, cansados, percebemos que a chegada é, a bem da verdade, um novo início. Alguém já cantou isso, eu sei: a mesma estação de chegada é a da partida.
Mas esses recortes, antes verdadeiros enigmas, são decifrados sempre após resultarem. Esse encantamento da surpresa diuturna e inevitável é o nosso combustível. E com ele seguimos viajando, esperando os acontecimentos, sem perceber que deles sempre participamos, de uma forma ou de outra. E esse decorrer resulta nas inúmeras colagens dentro de nós.
Somos vários, somos tantos! Somos o que nos cabe mas sempre transborda. Somos gente e gente é o que de melhor existe no mundo, ainda que às vezes tenhamos que esquecer esse ou aquele momento. Mas, afinal, nós também não merecemos ser esquecidos em alguma situação?
E a sombra de nossos corpos se materializa num movimento estático, refletindo como se um único fosse a materialização das várias silhuetas. Nossa catarata malcuidada é que nos impede de perceber.
A peça termina e eu sigo correndo pra casa. Minha vontade era a de recriar todo o texto que ouvi. Sei que não consegui, mas a ideia central, essa permanece viva nesse texto: somos construídos através de nossas diversas silhuetas sobrepostas e esse espectro, resultado do acúmulo de emoções, é quem nos guia. Isso significa dizer que somos nossos filhos, somos também nossos pais e nessa confusão tamanha emergimos, colocamos a cabeça pra fora na tentativa de acumular mais oxigênio, para logo em seguida mergulhar mais uma vez!
Excelente texto!
Parabéns ao autor!