Super-heróis

Peter Rossi

Pedro é um jovem com a sensibilidade à flor da pele. Tempos atrás, me lembro bem agora, lia uma postagem sua no Instagram, lamentando a morte, aos 95 anos, do quadrinista Stan Lee. A mensagem era de tristeza, mas também de agradecimento pela farta obra deixada.

Para aqueles que não ligaram o nome à obra, Lee foi o criador de inúmeros personagens dos quadrinhos, dentre eles, e na condição de protagonistas o “Homem Aranha” e os componentes do “Quarteto Fantástico”.

O simples fato de deliciar meu filho quando de seus escassos quinze anos com os mesmos heróis que faziam a minha cabeça já era motivo por si só, régua especial a medir a grandeza do trabalho de Stan.

Mas essa crônica não tem pretensões biográficas, tampouco pretende se transmutar em ode ao criador dos personagens. O que me faz pensar, refletir, é o sentimento que provoca em nós ao nos depararmos com histórias de super-heróis.

O quão nos faz bem torcer para que o bem sempre vença, que nossas melhores intenções se sobreponham a interesses mesquinhos de vilões mal-acabados. Quem dera fosse sempre assim a vida.

De fato, ainda que com poderes especiais natos, ou- tros nem tanto, e terceiros oriundos de uma vestimenta de alta tecnologia, certo é que os super-heróis, heróis em sua máxima plenitude, nos são essenciais.

Não percebemos, entretanto, que com eles nos deparamos nas mais diversas situações, ao longo de um dia comum de um ano qualquer. A gente tem o péssimo hábito de não valorizar atos plenos, que para nós, dada a facilidade em exercê-los, nos parecem menores.

Esquecemos que, como pais, somos os heróis dos nossos filhos. É a nós que eles socorrem quando a tempestade avança noite adentro, amplificada por trovões de largos decibéis. É conosco que dividem as angústias do término do primeiro namoro. Se estão numa roda de amigos e cada um a contar vantagens da própria vida, é comum superlativar as funções que exercemos em nossas vidas práticas.

Com o passar dos anos a função de super-heróis nos é solapada. Outros tomam o nosso lugar. Um amigo, o pai de um amigo, um professor, um irmão mais velho. Enfim, nossas histórias de heróis têm data certa para acabar.

E como nos aproveitamos pouco desses momentos de glória! Como deixamos de comemorar as medalhas que recebemos em forma de beijos, as faixas que em nossos peitos são apresentadas como abraços!

Mitigamos esses momentos que deveriam ser inesquecíveis, nos galgando ao máximo topo que podemos. Ser um super-herói, matar todos os bandidos que povoam os pesadelos nas noites aflitas, enxugar o suor na testa dos nossos filhos, preocupados com a prova que farão no dia seguinte.

Curamos, como heróis, todos os males que afligem a alma daqueles pequenos. E pequenos ficamos ao esquecer de tudo isso, menosprezar esses mínimos, porém gigantescos, gestos.

Me lembrando da mensagem do Pedro me vem uma agonia de não ter podido suprir, ou pelo menos esquecido do quanto servi de dispensa para todos os cintos de segurança que ele precisou nas curvas da vida, na extrema velocidade que a meninice descompromissada impõe.

Objetivos fúteis do nosso cotidiano acabam por acortinar nossas ideias, criando um opaco ocaso, um fogo fátuo, que nos impede de desfrutar o sabor da vitória. Vencer é provocar o sorriso a dentes pequenos, saltitantes de uma boca igualmente pequena, ladeada por bochechas, as mais delicadas e róseas.

Ser super-herói é um negócio muito sério, que deixamos esquecido nas páginas amareladas dos anos passados.

Saiba Pedro, que mesmo quando não precisar de nenhum dos meus superpoderes, ainda assim todos eles estarão ao seu absoluto dispor. Se precisar de empurrão no dia que não passa, fala comigo e vamos juntos acelerar os ponteiros do relógio, embalados numa conversa boa, de pai pra filho, daquelas que nos fazem esquecer que o dia demora por acabar.

Naquela desilusão suprema do beijo negado, quando a gente se sente como o pior dos piores, fala comigo Pedro. Vou te contar histórias de beijo como você nunca ouviu, os que dei, os que recebi e aqueles que pensei em dar, mas não consegui. Todos, além de entreter, te mostrarão que as coisas nem sempre saem como planejamos e, melhor do que lamentar, é mais prático mudar o planejamento e ver sucesso no que conseguimos alcançar. Simples assim, não é? Nada, é muito difícil! No verbo até faz sentido, mas na prática cansa muito.

Quando o time perder e a gente ficar com aquele vazio bobo no peito, vamos lamentar juntos. Com certeza descobriremos que nem tudo foi tão ruim assim e um bom sorvete acaba por enterrar qualquer placar adverso. Nada como um jogo após o outro, entremeado com uma casquinha gelada.

Vou te contar um segredo Pedro: eu ainda tenho escondido um cinto de mil e uma utilidades, que meu pai me deixou. É verdade, ele não usava muito. Era um super-herói com muito medo. Tímido, não tinha a mínima ideia do quão forte era. Como era lindo! Ele não tinha espelho e eu, bobo que era, nunca lhe disse ao pé do ouvido que ele tinha me salvado naquele dia, em qualquer dia, e tantos foram, Pedro, que eu perdi a conta. Engraçado, perdi a conta daquilo que nunca contei. Rasguei as fotos das boas ações de meu pai, do seu avô.

Mas falava do cinto de mil e uma utilidades. Já usei umas cento e poucas, o que significa dizer que ainda tem muita solução dependurada no cós da calça. Use e abuse! Afinal, se inertes, essas utilidades acabam por ficar obsoletas. Eu preciso gastar todos os cartuchos de boas novas. Armas pra justificar sorrisos, para apurar ouvidos, para indicar direções. Ah, tem aquelas que servem só pra abrir os olhos. São muito importantes essas utilidades.

E as naves? Já te contei que tenho licença pra pilotar até foguetes? Pois é, tenho sim! Você não vai se lembrar, mas já fizemos juntos algumas viagens muito especiais. Estivemos até na lua. E com o foguete aterrissado na Terra te mostrei de longe aquela mesma lua, grande e brilhante. Consegui te convencer que de longe ela é muito mais bonita e que sob seu manto todo amor vale a pena. A lua é a sacada das janelas de nossa alma. Ainda bem que consegui te explicar isso direitinho.

Ser super-herói, meu querido Pedro, é te amar plenamente e brincar de resolver todos os problemas, como se problemas não fossem, mas sim meras brincadeiras, as mais divertidas. É vestir aquela capa e voar, alcançan- do seus desejos. Super-herói também advinha desejos, sabia? Vê nos olhos dos meninos o que o coração deles mais almeja. Isso só os super-heróis conseguem fazer. E com um esforço digno dos mais valentes, movem pedras e montanhas só pra realizar os seus sonhos.

Super-herói anda de montanha-russa, por várias vezes seguidas, mesmo absolutamente tonto, não dando conta de si mesmo. Corre quando as pernas insistem em pedir clemência e um banco pra sentar. Chuta bola, brinca na piscina. Anda a cavalo, mesmo quando morrem de medo do bicho.

Uma das atividades que os heróis mais fazem é colar figurinhas no álbum. Eta coisa boa de fazer, boa-ação daquelas que não se esquece nunca.

É Pedro, ser super-herói é uma tarefa estafante, mas absolutamente prazerosa. Nas rugas pregadas pelo tempo enquanto dormia, percebi que a relação é absolutamente coletiva, de mão-dupla. Você é também meu super-herói. Obrigado, meu filho. Quando você veste a sua capa e sobrevoa a casa, me sinto absolutamente seguro, com a certeza de que você nunca me deixará perecer. Falo do cinto de mil e uma utilidades, mas sei bem que ele é seu. Só pego emprestado algumas vezes.

A história se repete, e os vilões acabam por ficar de lado. São expulsos de nosso mundo bom. Só aparecem pra fazer o contraponto, pra justificar a existência dos heróis das nossas vidas.

Hoje, cansado, me permito sonhar que você alça voo sozinho. Salva suas mocinhas, expulsa os indesejados que só atormentam a nossa paz.

É uma sensação única essa de sobrevoar o seu mundo e me deixar ficar quieto na sala de comando da Liga da Justiça, só admirando seus feitos, mãos ardendo de bater uma na outra. Um velho super-herói com a sensação absoluta de que todos os feitos valeram a pena. Um herói do passado, meio mal arrumado, com a cara amassada por não dormir direito, esperando você chegar.

3 comentários sobre “Super-heróis

  1. Belíssima mensagem, como é bom o imaginário, voltar no tempo e ao mesmo e sentir que sempre esteve
    presente. Ainda existe a fantasia rondando nossas mentes, o futuro e o passado se entrelaçam em emoções e lembranças que teimam em não abandonar nossos caminhos. Obrigado Peter, por uma noite de inesquecíveis recordações!

  2. Como é bom usar a imaginação e poder sonhar . Peter, os seus textos têm o poder de nos fazer voar para além do horizonte.
    Obrigada por compartilhar os seus lindos textos.

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