Dois sóis

Peter Rossi

Ouvi do Professor de História da Arte que teria Matisse dito a Picasso que na verdade existem dois sóis; enquanto o de fora não está radiante, certamente o nosso sol interior brilha.

Fiquei a pensar na exatidão dessas palavras. Perfeito! O sol é tão bom, tão essencial, que um só é pouco… São necessários dois sóis, no mínimo. Esse é o equilíbrio da natureza, tão desejado …

Se na verdade pudéssemos compensar a escuridão na alternância do brilho desses sóis a vida seria mais tranquila de se levar. Tudo seria simples luz. Ilusão sempre iluminada e aquecida e, convenhamos, sem ilusão nada brota, em lugar nenhum.

O sol interior, portanto, é a projeção de nossa ilusão em raro brilho. Ele tem a função específica de fazer brilhar a noite mais escura. É nele que nos apegamos quando o dia não se mostra tão colorido, quando nossa chuva é curta e ácida, nossa manhã é cinzenta e opaca. Com dois sóis todo dia seria eterno, e a felicidade nele refletida em cinemascope.

As palavras de Matisse são realmente sábias, completas. E não representam um objetivo assim tão distante a ser alcançado. Basta a gente usar o nosso coração como verdadeira bateria, como a de um carro, a acumular todo o calor do dia, deixando-nos abastecidos a enfrentar a escuridão dos piores momentos. Com o peito cheio de luz é, de fato, mais fácil enfrentar a premissa de encontrar a saída.

As fechaduras ficam mais evidentes e as chaves dependuradas na alça da calça. É só experimentar, ainda que uma por uma, que os ferrolhos se abrirão.

Com o coração abastecido de sol, enfrentamos todos os desafios, todos os desenhos antes caricaturas, as sombras céleres, o desmemoriado medo.

E não pensemos que o céu seria pequeno para dois sóis. Lógico que não! Os brilhos nunca se cruzam, o que significa dizer que nenhum espelhará o outro a ponto de nos cegar.

Um dos sóis estaria num gostoso cochilo de fim de tarde, embalado a cheiro de café coado e broa de milho com queijo. Êta sono bom o desse sol. Mas, assim que convocado, desperta e espreguiça dentro de nós espalhando raios de luz para todos os lados. Nosso coração se clareia, se bronzeia de luz, estirado na praia de nosso peito.

O outro sol, por seu turno, vai para o outro lado do mundo, até porque mundo mesmo é um só. Vai embora sol de fora que o meu de dentro está na beira do palco, escondido atrás da cortina do dia, esperando para entrar em cena e receber os merecidos aplausos da minha alma, o sorriso da minha boca, o encantamento dos meus olhos.

Descansa sol de fora, roda mundo afora, ilumina outros ares, aquece outros peitos e mares, pois são vários os corações navegando, todos olhando para ti.

E você, meu querido sol de dentro, te abraço com um carinho em forma de aconchego e deixo você explodir em muitas cores, muitos matizes, enxugando meus medos no calor do asfalto refletido.

Interessante mesmo essa história de dois sóis. Irmãos gêmeos brincando de esconde-esconde, se alternando na eterna vigilância que a luz impõe. Sóis eternamente dependurados sobre os varais de nossas vidas, num fundo de quintal, deixando nossos sonhos a quarar.

Uma coisa tão simples mas sobre a qual nunca tinha me debruçado antes: como se debruça o sol, escondendo na linha do horizonte no final da tarde, pintando de laranja nossas retinas e nos fazendo sentir libertos, sol maduro, refletindo no fim do escuro. De repente, é só olhar para o outro lado, e lá vem o sol, nascendo amarelo, novinho em folha.

Mas nasce também uma séria dúvida: se os sóis se alternam, como vivemos sem a lua? Nossa namorada, nossa infiel mulher desmanchada em devaneios junto à próxima serenata.

Não, sem a lua, não!! E os beijos roubados? Os abraços, os amassos, o sexo em pé no muro da juventude.

Não podemos, absolutamente, viver sem a lua. A zombetereira e gaiata testemunha ocular de nossas sandices mais escondidas. Matisse não cometeria uma gafe tamanha. Não pensara em dois sóis de modo a simplesmente enxotar do quadro a lua, a nossa, a sua.

Foi um erro elementar de interpretação. Um ouvir raso de minha parte. Matisse não quis se referir a um sol rendendo o outro, nada disso! Ele pensou no sol sob a forma de binóculo, espreguiçando diante de nossos olhos. Ele quis dizer que o sol, antes de qualquer coisa, é um estado de espírito e que temos mesmo que usufruir da sua energia acumulada em nossos peitos a ser utilizada quando precisarmos, para que nunca deixemos de brilhar. As lentes do dia perpassam nossa vontade e pavimentam os nossos movimentos. Sejamos calmos. Se o céu sofrer uma crise existencial e num momento de timidez sair de cena, olhemos para dentro e nosso próprio brilho refletirá o dia.

E a lua? Ah, a lua não tem nada a ver com isso. Deixa-a lá, coladinha na noite a iluminar somente o amor.

Isso mesmo, a lua só ilumina o amor. Não existiriam namorados, tampouco apaixonados. Sem a lua os beijos não se entrelaçariam, trazendo consigo abraços e mãos apressadas a percorrer as curvas de nossas vontades. Indispensável lua, que de cândida nada tem. É, ao revés, esperta e alucinada. Corre de um lado a outro do céu e acaba por dependurar naqueles mesmos nossos varais os nossos apaixonados corações, escorrendo em lágrimas de sublime felicidade.

Nossos sóis, nessa hora, ficam os dois escondidinhos, sentados na primeira fila, assoviando e fingindo que nada é com eles, afinal deverão estar atentos ao chamado do novo dia, no qual acordaremos exaustos de tanto amar.

Essa é a verdade dessa história toda: dois sóis e uma lua, todos a refletir nossos sonhos, povoar nosso imaginário, companheiros da paixão absoluta que nos move, que nos envolve, que nos devolve inteiros para essa vida que, afinal, é a melhor de todas. Essa louca vida que vida só é quando sentida à flor da pele, aquecida pelo sol após um banho de mar. Que nos faz arrepiar sempre que a lua, na penumbra, nos assiste amar demais.

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