Peter Rossi
Hoje acordei decidido! E, decididamente, baixei um decreto irrevogável: voltei vinte anos atrás!
Que alegria toda a energia disponível em bombonas de plástico, armazenadas na garagem dos meus sonhos. Blocos e mais blocos de papel, com os dizeres da vida.
Com vinte anos a menos tenho toda a disponibilidade possível … e imaginária. Posso andar de bicicleta sem preocupar se o caminho de volta é longo ou não. Basta pedalar e pedalar, e pedalar … O vento acariciando meu sorriso escancarado, adolescente debochando da vida como ela merece … com absoluta intensidade.
Pego no violão com um tesão insano. Acaricio cada uma de suas cordas e com elas faço todo o amor que existe nessa vida. Em cada acorde, em forma de beijo, um desejo, um novo despertar, um sussurro escondido atrás da porta, vendo a vida passar.
Pego a caneta e o papel e desenho a mulher mais linda em versos intermináveis, letra após letra, numa ferrovia que corta as montanhas do meu peito jovem, aberto, sensível e despojado.
Abro os olhos e em seguida abro a janela. O mundo ali fora, esparramado. Colho alguns sóis e ponho num vaso branco, em cima da mesa, a brilhar só prá mim. Sou correspondido e correspondo: percebo que estou a brilhar também!
Afinal são vinte anos a menos e eu o mesmo, revendo despretensiosamente aquela vida boa, aquela coisa à toa. A felicidade preguiçosa estendida numa rede na varanda de treliças de madeira que habita a minha infância. Madeiras entrelaçadas, fininhas, umas brancas, outras azuis, como a refletir o céu.
Vou girando o seletor de canais, bem devagar, afinal não quero perder um minuto sequer. Coloco um calção, um tênis e uma camiseta e vou, vestido de gala, dançar uma valsa de quinze anos em plena areia da praia. Quinze anos? Não! Vinte!
Sol e mar, juntos, dividindo, sob a linha do horizonte, cada espaço da tela. Agora tenho em mãos todos os pinceis! As cores, de olhos abertos, estendendo as mãos e me pedindo prá pegar, buscam me seduzir. E o que é melhor, a vida estendida na avenida em forma de aquarela! Sou um artista com vinte anos menos e cada vez mais apaixonado por ela.
Afinal, qual a razão dos vinte anos a menos? Porque baixar o decreto? Não sei, acho que mera desculpa, apenas uma tênue justificativa a desembocar no desengano de pensar que a vida passou. Nada! Ela não passa, a vida circula, abraça!
Ter vinte anos a menos é o que menos importa. Fazendo um flash back tento me lembrar de algo que me remeta a esse marco. Nada especial. Há vinte anos nada demais aconteceu que mereça placa que eternize.
Ao contrário, há vinte anos atrás apenas começou a delícia dos últimos vinte anos. A ópera louca de pratos e metais, de brilhos lúcidos, de música atordoante que eu me deliciei em ouvir.
A vida, há vinte anos atrás, traz uma só diferença: já vivi. Desaguou como uma cachoeira, a molhar meus ombros com uma água gelada que limpa e purifica minha alma. Isso mesmo, a vida é cachoeira! Despenca lá do alto e forma um lago logo depois, onde nos deitamos de braços abertos a contemplar o céu. E em torno desse lago, à espreita, as montanhas brincam de desenhar sombras, cada uma mais alta que a outra. E permitem que o vento corra sussurrando palavras de amor por entre suas curvas.
A vida é a mais linda das mulheres, todas que nunca tive, as que amei sozinho, as que acariciei com as mãos. As que compartilharam minha cama, nas nuvens, no meu insensato sonho. As mulheres que amei com toda força e ritmo de meu coração.
Vida apaixonante, não me esqueça, estou sempre à sua espreita, ainda que com vinte anos a menos, mesmo que com vinte anos a mais.
Vida leve, vida breve, vida toda. Vida com vestido de roda a dançar na rua, como se o amanhã nunca mais voltasse. Vida mirando a lua. Ah a lua, vida brilhando, intensa e única. Vida minha, minha menina com seu vestido de noite, brilhando em forma de raio de luz.
A vida me convida pra deitar na grama molhada, logo após descortinar o dia. Que delícia o carinho da vida, servido sobre a toalha xadrez, com cheiros, bolos, manteiga derretida a lamber o pão e um delicioso copo de groselha, vermelha e doce. A vida se fantasia de piquenique e nos envolve ao cair da tarde, sonolentos e apaixonados.
Que bobagem os tais vinte anos a menos. Era só um mote a tomar a vida como dote. A lançar meu barco no mar e nas ondas da vida, como um parco bote, sem vela e sem leme, simplesmente me deixar navegar.
Marquei encontro com a vida no bar da esquina. Algumas doses de coragem congeladas, mergulhadas num copo de uísque à meia luz. Um cigarro, uma conversa boa e sincera, a vida e eu em eterna paquera. A vida me seduz com seu vestido verde. Não era vermelho o vestido – era absolutamente verde! Linda, inesquecível, com um indefectível decote de estrelas. Ombros à mostra, sensuais. A vida me olha e arqueia a sobrancelha como a querer me convencer que não existe nada mais a fazer do que deitar no seu colo e juntos escolher a melhor maneira de deixar ficar.
Como eu disse antes, os vinte anos a menos nada significam. A vida continua ao meu redor e eu perdidamente apaixonado por ela. A vida não me deixa outra alternativa, me consome em suas entranhas. Me perco de tanto viver!
A vida me desafia a tentar entende-la. Besteira! Vida é prá ser vivida, sonhada, amada e despretensiosamente desfrutada. Subir no pé de vida e sorve-la como a mais doce jabuticaba. Vinte anos a menos só representam folhas desgarradas de um calendário tolo. Rebobinar a fita é coisa absolutamente sem sentido. Toda a trilha foi ouvida, outras tantas me aguardam.
Fecho os olhos e contenho uma pequena lágrima que, num feroz acesso claustrofóbico, insiste em sair. Não estou triste. Nada disso! Vida se rega com as mais felizes lágrimas. E brotam momentos os mais alucinados. A vida perde o freio e desliza pelas curvas da nossa esperança acima dos limites de velocidade, desafiando nossas pretensões, acelerando nossos corações, subvertendo todos os nossos radares morais.
O decreto baixado em nada me socorre. Acabo de revogá-lo! Vou partir prá outra e me desculpem os que esperavam outro fim prá essa história, sem pé nem cabeça.
Agora tenho mais o que fazer. Depois de baixar o decreto, revogar a medida e entender que vinte anos não significam nada, peço licença penhoradamente, vou na esquina encontrar minha menina, minha alucinada vida, despenteada e louca, encostada no muro, apenas a esperar um beijo meu.
Que lindo Peter! Sem saudosismos mas com ânsia de viver a vida.