Quando eu morri...

Quando eu morri…

Rosangela Maluf

Ontem, quando eu morri, era quarta-feira, 19 de abril, dois dias após o meu aniversário de 50 anos.

Não pensei que uma cirurgia tão simples pudesse terminar em uma parada cardíaca. Estou achando que estou indo cedo demais, mas não teve mesmo jeito.

A moça de azul entrou na sala do CTI, verificou os fios, suspirou profundamente, me olhou e apertou uma campainha que, imagino, deve ter tocado na sala de enfermagem.

Entraram logo depois três pessoas vestidas de branco, um homem e duas mulheres. Apenas resmungavam.

Quis ouvir o que diziam, mas só conseguia escutar barulho de água, muita água, cachoeiras, cascatas, cataratas, ondas do mar, algo assim…

Pessoas começaram a chegar. Há muito entra-e-sai nesta sala de tratamento intensivo. Muita gente, muito barulho. Estou quieta, não consigo me mover.

Ouço ao longe um rádio, talvez uma partida de futebol; na sala de enfermagem?

A esta hora? Pode ser. E agora? Por onde devo começar? Não respiro mais e nem posso mais controlar minha ansiedade. Teoricamente, não deveria me sentir ansiosa.

Sinto-me estranha, muito estranha, e tenho tanto para resolver ainda hoje! Quero sair daqui. Vou sair daqui.

O barulho das águas que ouvi ainda há pouco era do mar. E é sobre ele que me vejo agora. Já é dia claro. O céu está azul e faz um sol bonito. As ondas são enormes, azuis ou verdes, não consigo definir muito bem.

Estou acima delas, como a bordo de um aeroplano, em voo rasante. A praia está deserta. Flutuo sobre a areia clara. Não vejo ninguém.

Alguns pensamentos me assustam, mas logo me livro deles. Preciso aproveitar a sensação de ser água, eu sou o mar.

Amplidão, liberdade, calma e serenidade, é isso que sinto. Agrada-me esta sensação embrionária. Sim, estou no ventre da mãe. Amniótico.

Não consigo saber que horas são. O que eu deveria fazer agora? Árvores imensas me impedem de continuar voando. Mergulho em uma mata densa, fechada.

Raios de sol atravessam as copas das árvores e me fazem pensar em fotografias. Linda luminosidade. Tantos tons de verde que me confundem.

Tenho a impressão de que o céu aqui é verde também. Não ouço nenhum som. Imagens, apenas imagens.

Vem-me a certeza de que sou uma árvore também. Abro gostosamente os braços; sou galhos imensos, troncos fortes, ramos, muitas folhas. Sou vegetação. Sim, isso mesmo, vegetação.

Clorofila, muito verde, luzes, sinto-me uma planta. Natureza, mãe terra, Gaia, fertilidade, grandeza, é isso que sou agora.

Vejo uma casa bem no meio da floresta. É a minha casa. Em uma clareira. A garagem vazia. O jardim. Entro pela porta lateral, subo ao segundo andar e vou até a biblioteca.

Minha escrivaninha, meio desarrumada. Procuro, mas não consigo encontrar minha agenda.

O que está acontecendo comigo? Estranho, não vejo ninguém, tudo muito calmo: os livros na estante, os porta-retratos com fotos da família, a antiga cômoda da minha avó.

Abro as duas últimas gavetas; lá guardei caixas com fotos antigas, reveladas em papel fosco. Todas elas em cores e separadas em grandes envelopes pardos.

Etiquetados por ocasiões especiais e/ou rotineiras. Abro os envelopes do meu casamento, o barrigão de grávida, aniversários dos filhos, natais, festinhas de escola; revejo a grande família feliz, reunida nas bodas dos meus pais, o beijo dos dois; vários envelopes com as viagens, os bailes de formatura, encontros de amigas, casamento dos filhos, fotos com os netinhos e uns retratinhos 3×4 escondidos em um envelope menor – namoradinhos do tempo de colégio.

Sorrio, saudosa, daqueles amores perdidos no tempo. Coloco as fotos, uma por uma, em sequência e fico pensando em tudo que estou deixando ficar!

Tudo que me foi tão caro, tão importante, e que agora permanecerá naquela mesma gaveta. Longe de mim.

Invade-me um sentimento de imensa gratidão. Reconheço a plenitude que guiou os meus passos. No balanço das horas, tive momentos bons, outros nem tanto, e alguns odiosos.

Fui muito amada e amei muito também. Sinto-me orgulhosa por tudo que consegui em minha vida profissional.

Procurei dividir, com os próximos a mim, tudo que poderia ser distribuído, repartido, compartilhado.

Olhando para trás, não levo comigo nenhum remorso, nenhum arrependimento, nada de ódio ou rancor. Algumas coisas poderiam ter sido feitas de outra maneira.

Poderia ter me chateado menos, esperado menos das pessoas, criado pouca ou nenhuma expectativa, mas não deu…

Devo ter comentado inverdades, contado mentirinhas, nem sempre tive um comportamento exemplar, mas tive uma vida normal, com defeitos, planos mal-sucedidos e tristezas também… muitas tristezas!

Sobre a escrivaninha, encontram-se os livros ainda por ler; caderninho de anotações, folhas soltas com recados, números de telefone.

Olho tudo sem saudades. Sem apego. Não sinto medo. Não temo o depois. E a transferência de consciência será uma realidade ou não?

Lembro-me do powa tibetano – tudo para voltar à terra pura, livre do sofrimento, das doenças, dos problemas, das dores.

Pergunto-me se serei merecedora de uma passagem leve e apaziguadora. Passagem para onde? Estarei mesmo saindo daqui? Estou mesmo indo embora? Para onde irei? Não sei ainda…

O que sou eu agora? O que serei de hoje em diante? A impermanência, experimentada em muitas vidas, me diz que nada permanecerá igual por muito tempo. Tudo muda.

Eu também estou mudando, passando de uma vida para outra vida? Levarei de mim tudo que vivenciei, vivi, experimentei? O que irá sobrar no final de tudo? Não posso acreditar que serei nada, nada!

Vejo um filme em câmera lenta. Uma quantidade imensa de recordações, de saudades dos tempos passados, das pessoas, dos locais, dos acontecimentos, um turbilhão de sensações muito vivas, muito fortes, porém efêmeras.

A isso chamamos memória? Ou consciência? O que sobrará de mim quando desprovida do corpo físico? Serei apenas a memória? Ou apenas o quê?

Daqui onde estou, posso ser tudo que quero, posso me deslocar para onde desejo, tenho vontades e as realizo – só não sei se isso é real!

Sinto-me flutuar e me vejo muito além do tempo e do espaço. Agora sou nuvem.

Continuo vagando pela casa, entro no meu quarto. Olho tudo com muita calma. Ainda penso que tudo aqui me pertenceu um dia, mas sei que nada disso é meu. Fui feliz aqui. Sorri muitas vezes. Chorei tantas outras. Sofri pelos mais diversos motivos. Comemorei muitas vitórias.

Celebrei a vida, o amor, a alegria e a felicidade. Lamentei perdas, arrependi-me de erros cometidos, revi muitas cenas da minha vida.

Abraçada ao travesseiro, fiz julgamentos equivocados e outros ponderados e justos. Chorei lágrimas infinitas.

Planejei dias melhores para minha vida, adiei muitos projetos, reprogramei outros.

Propus mudanças que poderiam me fazer mais feliz. Sempre a felicidade. Sempre. Para mim e para as pessoas queridas.

Poucas coisas desejei, mas persegui, incansavelmente, a alegria e uma vida plena. Sem ambições desmedidas, consegui (quase) tudo que quis.

Sinto uma gratidão imensa por aqueles que cruzaram o meu caminho. Pelo bem ou pelo mal, foram grandes mestres, grandes escolas, fontes de aprendizagem e sabedoria, mesmo quando eu não conseguia entender muito bem a situação vivida. Sinto profunda gratidão por ter tido os filhos que tive.

Lembro-me, com o coração apertado, de cada um deles. Nenhum amor se lhes compara, nenhum outro. Lamento deixá-los.

Cada um deles preencheu os meus espaços internos e fez de mim um ser humano melhor. Muito melhor.

No quadro de avisos, dois recados. Deslizo carinhosamente meus dedos sobre as fotos, os cartões “te amo” e as fotos das mãos em forma de coração, I love you. Eu também amo vocês. Para sempre, amarei.

Estou cansada, muito cansada. Não sei o que faço agora. Nenhuma vontade de nada. Nenhuma expectativa. Acho que sinto sono.

Olho ao redor: nada de luzes brilhantes, escadarias azuis ou pessoas brancas e translúcidas… nada de vozes chamando o meu nome, nada de cenários surreais. Ainda sou eu. Aqui. Com muito sono. Muito cansaço.

Não respiro mais e volto do profundo mergulho, das águas calmas onde me encontro. Chego à superfície, mas superfície não há…

E mesmo assim, eu vou!

6 comentários sobre “Quando eu morri…

  1. Confesso que não consegui ler seu texto. Parei no segundo parágrafo. Lembrei-me de uma grande amiga, falecida há pouco mais de um ano, que me relatou, antes de morrer, um episódio parecido com sua descrição inicial, de uma crise que ela teve no hospital, quando quase morreu, mas foi salva a tempo. Algumas semanas depois ela teve outra crise e morreu.

  2. Uma viagem marcante! Uma possível passagem pelo misterioso caminho ao mundo espiritual e ou etéreo. Questões claras do processo individual da vida.
    Adorei!

  3. Quanta beleza se descobrir q somos tudo isto,agua ,árvores, as tempestades humanas e etc. Como este texto nos dá a imensidao do q somos . Quantos acúmulo. Parabéns Rosangela.

  4. Eu imagino a morte mais ou menos assim. Um curto momento de profunda consciência no despedir-se da vida, seguida pelo nada, pelo mergulho no nada.
    Emocionante.

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