Não me lembro de ter feito outras vezes uma viagem sozinha com o meu pai. Quero dizer, só ele e eu. Todas as minhas fotos e lembranças são da família inteira reunida. Em férias, a bordo da Rural Willys, cor de café com leite, éramos então cinco pessoas, pois os gêmeos só chegariam algum tempo depois: papai, mamãe, meus dois irmãos e eu.
Eu não frequentava ainda a escola. Nunca havia saído sem a minha mãe e me lembro de ter ficado um pouco ansiosa. Ela, um tanto preocupada. Nos dias anteriores, eu tomara vacina contra poliomielite e a mamãe tinha receio de alguma reação inesperada. Levantei a perna do short e mostrei, na coxa, o local da vacina. Nada, apenas um pouco mais rosada que o normal.
Foi ela quem arrumou a pequena mala onde colocou a camisolinha, o chinelo, uma saboneteira de plástico rosa; a escova e a pasta de dente, num saquinho plástico (ainda não se usava nécessaire). O cabelo a gente lavava com o mesmo sabonete do banho, nem se falava em shampoo! Não me lembro de ter usado camisetas de malha. Confortáveis e fresquinhas eram as blusinhas sem manga, em puro algodão, feitas pela costureira. E shorts, vários, eu gostava muito e usava sempre. Um vestido de “prometi”, caso surgisse uma oportunidade para ir à missa, em Antônio Dias – a cidade mais próxima da Fazenda do Machado, para onde iríamos por uma semana.
A Fazenda do Machado existe até hoje. No fundo de um vale, com um paredão de pedra onde a natureza esculpiu, em basalto branco, o formato de uma machadinha. Daí o nome. Desde o meu bisavô, meu avô (que não conheci) e, à época, o meu tio, a fazenda sempre pertencera à mesma família. Uma pequena agricultura familiar, quase cem por cento autossuficiente. Gado de corte, bois bravios, vacas leiteiras, muitos porcos rosados, cabritinhos barulhentos e muitas galinhas espalhadas pelo galinheiro, no imenso quintal.
Os pés de milho davam origem às espigas que, aos montes, eram guardadas num pequeno celeiro. Depois de debulhado, o milho era levado até o moinho d’água para se transformar em canjiquinha e, depois, em fubá. Muita cana-de-açúcar para o melado e a rapadura. Hortas com todo tipo de verdura: tomate, batata, inhame, cará, chuchu e até feijão. Não me lembro muito bem, mas acho que só o arroz era comprado no armazém de Antônio Dias. O leite, tomado morninho, recém-tirado das vacas, o queijo fresco, o requeijão, tudo delicioso.
Um amigo do meu pai nos levou de táxi. Saímos de nossa casa rumo à rodoviária de João Monlevade. O ônibus para Nova Era já estava estacionado. O papai colocou as duas malas e subiu com a sacola do lanche. Nos instalamos: ele no corredor e eu na janela, muito curiosa e ansiosa para ver todas aquelas paisagens desfilando rapidamente ante meus olhos. Lembro-me de ter acordado quase chegando à estação do trem! Isso mesmo: o ônibus nos deixava na estação ferroviária de Nova Era, onde pegaríamos o trem até a cidadezinha de Drummond.
Certamente meu tio estaria lá esperando por nós, com os cavalos. Sim. Chegaríamos à fazenda em grande estilo: eu, montada em um belo cavalo malhado de cinza e branco. Era assim que eu imaginava a nossa chegada, um cavalo só para mim, para eu “dirigir” sozinha.
No trem, olhava tudo, maravilhada com aquela minha primeira viagem. Vendo tudo pela janela aberta, o vento nos cabelos, os olhos apertados, tudo era novidade. Depois de certo tempo, a sacolinha do lanche foi aberta e, ali mesmo, comi os ovos cozidos, o sanduíche de queijo e uma garrafa de Guaraná, já quente! Adormeci deitada no colo do papai. Acordei com ele me avisando que estávamos quase chegando. Fiquei novamente de pé, encostada na janela, esperando chegar à nova estação. O vento, o rio correndo do lado direito, o sacolejar do trem, o apito… Respirei fundo e sorri. Que alegria!
Descemos. Eu carregava uma pequena bolsa com nossos chinelos e o meu único sapatinho preto de verniz. O papai se encarregava do resto: duas malas de couro com nossas roupas e presentes para o tio e a tia. Os nove primos ganhariam bombons Sonho de Valsa. Eu não os conhecia, mas o papai foi logo abraçando um senhor de chapéu e outro rapazinho, meu tio e o meu primo mais velho.
Fiquei triste quando vi dois cavalos: um para o meu tio, com o meu primo na garupa, e outro para mim, junto com o papai na mesma sela. Lá se foi o meu sonho de cavalgar sozinha, como nos filmes. Não tenho hoje a menor noção de quanto tempo levamos até à fazenda, mas a viagem foi uma experiência inesquecível. Eu me sentia como num sonho ou numa tela de cinema.
Achei muito lindo passar pelos caminhos ladeados por árvores imensas. Achei mágico olhar para o alto e, através do verde das árvores, ver o céu azul, como manchas esfumaçadas de uma tela, em aquarela. Havia um riacho para atravessar. Meu tio sugeriu que apeássemos (descer do cavalo), e o papai disse que me mostraria uma coisa que eu nunca havia visto antes.
Tirei as sandalhinhas, tirei as meias, dobrei um pouco mais o short e entrei no riacho. Vontade de fazer xixi.
– Pai!
Resolvido o problema, atrás de um arbusto onde ninguém poderia me ver, e usando o papel que a mamãe colocara na minha sacola, tudo certo.
– Pai! Posso molhar o cabelo? Sim? Tá bom, eu tiro a blusa.
– Pai! Quero entrar na água. Posso ficar só de calcinha?
– Agora venha cá você! – disse o pai. – Vou te mostrar uma coisa. Desde criança, eu tomava água assim. E foi o meu pai que me mostrou pela primeira vez. Venha… você nunca viu nada igual.
Pediu ao meu tio um pequeno facão que ele trazia na cintura. Procurou uma moita, se agachou e cortou quatro folhas grandes, verdes, com as bordas arredondadas. Deu uma para o meu tio, outra para o meu primo, separou a dele e, me pegando pela mão, nos dirigimos à nascente do riacho, que ficava a poucos metros dali. Fomos caminhando contra a pequena correnteza vinda da nascente.
– Tá vendo esta folha? Você vai tomar água nela. Vou te mostrar.
A folha era verde escura, mas nela, a água cintilava. Um brilho que nunca havia visto igual. Milhares de estrelinhas. E quando o sol batia? As estrelinhas se mexiam de um lado para outro, na folha verde.
– O que é isto, pai?
– Folha de inhame. Não precisamos de copo, tá vendo? É só colocar a água na folha, segurar assim dos lados e pronto. Pode beber a água. É ou não é uma beleza? Olha só, o brilho que ela tem. Olha só quando o sol bate. É bonito ou não é?
Maravilhada, tomei toda a água que consegui segurar na folha e fui até a nascente pegar mais. Enquanto meu pai e meu tio conversavam, com os pés dentro d’água, eu repetia inúmeras vezes o pequeno ritual de encher a folha, ficar olhando o brilho da água na folha de inhame e as estrelinhas que se espalhavam ante meus olhos, como se tivessem vida própria. Estava encantada com tanta beleza. Encantada com o barulho do riacho. Encantada com os arrepios de frio por causa da água fresquinha e o calor do sol que batia em mim.
Na minha imaginação, ouvia música também. Parecia flauta. O som acompanhava o movimento da água que eu deixava cair, só para repetir tudo mais uma vez. E mais uma, outra mais.
– Vem, filha, já chega. Veste sua roupa, calça seu sapato e vambora.
– Só mais um pouquinho. Um tiquinho assim, ó!
Não deu. Minha tia esperava por nós. Ainda tínhamos um pedaço de chão para cavalgar. O desconforto de me sentir molhada não me impedia de continuar admirando todo aquele verde. Árvores dos dois lados. Arbustos, com espécies de cordas, dependuradas. Galhos espalhados pela pequena estradinha que seguíamos, nos dois cavalos, um atrás do outro. A alegria de continuar a ouvir o riacho que agora passava ao nosso lado. Mais estreitinho, mas ainda assim barulhento. E, vez ou outra, havia um canto de pássaros. Não podia vê-los, mas podia ouvi-los. Olhando para o alto das árvores, eu procurava um ninho ou uma casinha, nada! Só uns pios estranhos, uns barulhinhos desconhecidos.
Não sei quando foi que deixei de me lembrar da água na folha de inhame. Certamente esta lembrança me acompanhou por muitos anos e lembro-me, já adulta, ao ouvir uma música com flauta, das imagens da minha aventura que me vinham logo à mente.
A fazenda ainda existe e ainda pertence à família. Alguns primos vivem lá, cada um em sua própria casa.
Meu pai já se foi, há alguns anos.
Eu, adulta, na luta pela vida, pela sobrevivência, pela saúde, pelo trabalho, procuro dar conta de tudo, e tenho dado.
Algumas lembranças da infância tornam menos penosos os nossos dias.
Boas lembranças da infância tornam menos sofrida a nossa insônia.
E lembranças mágicas da infância nos ressuscitam quando a vida insiste em nos matar!
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Sua crônica me emocionou.Saudades também da tia Faride e do Tatão.
Bjs
Querida Rosângela, linda homenagem ao dia dos pais . Amei.
Zanza, fui e voltei ao passado com esse seu conto delicioso!!! Tive oportunidade de vivenciar uma experiência, bem parecida, em viagem à Paciência, terra de meu saudoso Pai, nas proximidades de Santa Bárbara. Obrigada por avivar em minha memória um pedacinho da minha infância quase esquecida. Nota 1000.
Muito lindo.
Bela narrativa.
Uma leitura como deveria ser sempre.
Ler com os olhos e com a alma.
Obrigado!
Muito lindo.
Bela narrativa.
Uma leitura como deveria ser sempre.
Ler com os olhos e com a alma.
Obrigado!
Lindo conto, amiga. Do jeito que vc narra, a gente viaja junto com vc.
Bela homenagem ao dia dos pais.
Mais um conto delicioso.
Belas e ternas imagens como essas se gravam no coração! Amei!
Fiquei emocionada.Poucas pessoas conseguem nos levar ao passado com tanta leveza e veracidade.
Um lindo poema, o seu delicado e amoroso conto. Gostei demais, fiquei encantada com a leveza das suas lembranças !
Um beijo.
lindo texto! Boa narrativa das lembranças da infância!!