A caderneta

Peter Rossi

Embora negasse, além do medo de altura que fazia suas pernas formigarem, Ernesto tinha um lado hipocondríaco.

Volta e meia sentia dores que nunca se repetiam. Quedava na cama pensando que a vida se esvairia dali algumas horas. Organizava os pensamentos e estabelecia suas prioridades, embora convicto de que jamais conseguiria atingi-las.

Numa dessas, quase voltando da morte que não lhe assombrou e suando só pela perspectiva, teve a brilhante ideia de anotar os seus pensamentos em uma caderneta.

Na manhã seguinte, um sábado acalorado, calçou as sandálias e, vestido com uma bermuda e uma camiseta de malha na qual se lia a mensagem “Legends never die”, caminhou até a papelaria. Com os cotovelos no balcão, passou a vasculhar a prateleira de cadernos e cadernetas da loja. A atendente, com toda paciência do mundo, esperava a definição.

– Então, Sr. Ernesto, já escolheu?

– Sabe minha filha, o que me dá dúvida é o tamanho da caderneta, o número de páginas. Eu quero escrever algumas anotações mas você sabe, não me resta muito tempo. Por isso, não devo comprar uma caderneta com muitas folhas, é desperdício.

– Nada disso, o senhor ainda estará conosco por muito tempo. Sabe disso!

– Não sei, menina. Pelo contrário, a cada dia que passa é um dia a menos.

– Ora, Sr. Ernesto, isso acontece com todos nós. Mas eu acho, me desculpe a intromissão, que o que vale a pena é somar os dias que vivemos, e não diminuir os que ainda virão. Eles virão, sabemos disso.

– Acho que vou querer aquela caderneta de capa preta.

A atendente foi até o fim da loja e conversou com uma moça gordinha que estava sentada, olhos postos no celular. Ela esboçou um sorriso e meneou a cabeça, parecendo concordar com as ponderações de sua funcionária.

– Sr. Ernesto, esta não podemos lhe vender, está com defeito! Mas tome essa aqui, com a capa azul clara.

– Moça, essa é muito mais grossa e, certamente, mais cara! Não precisa. Não acredito que você está querendo que eu gaste mais! Que coisa feia menina!

– Nada disso! Fico até ofendida que pense assim. Conversei com minha gerente e ela autorizou a venda dessa de capa azul pelo mesmo preço da de capa preta. Eita, Sr. Ernesto, sempre desconfiado, né?

O velho homem recolheu-se num olhar de vergonha e fez entender à atendente que aceitara. Caminhava até o caixa e tirando umas notas do bolso da bermuda, saiu com a nova caderneta em mãos. Quando já cruzava o umbral da porta loja, ouviu um chamado da atendente e logo se virou para saber do que se tratava.

– Seu Ernesto, sabe qual o defeito da caderneta de capa preta?

– Não sei, minha filha, você não falou.

– Na verdade, ela tem pouquíssimas páginas para o senhor escrever e com certeza ainda tem muita coisa pra nos contar. Não serviria de nada.

Ernesto recebeu aquelas palavras como um abraço e só fez sorrir. Sua vontade era correr e abraçar aquela jovem que lhe transmitia tanta carinho. Mas conteve-se. Precisava manter a pose de velho taciturno. Mas, no fundo, se sentiu feliz, talvez como nunca tenha se sentido nos últimos tempos.

Enfim, Ernesto chegou em casa e logo se sentou à mesa com a nova caderneta e um lápis na mão. Ouvira dizer que o melhor era sempre escrever à lápis, pois nada na vida é definitivo. Aquele pensamento o alcançou profundamente e passou acreditar que as lágrimas seriam a borracha a desmarcar o que antes fora só um sentimento esparso.

Começou colocando a data e em seguida escreveu: Me chamo Ernesto, moro sozinho, sou viúvo. Cecília, minha mulher, morreu cedo, me abandonou sem querer. Fiquei eu com dois filhos, meus tesouros, Ernesto Filho e Celso, esse com o nome em homenagem a mãe. São adultos, cada um com sua vida. O mais velho, médico, vivendo no exterior. O mais novo é artista, escritor e pintor, tudo o que eu queria ter sido. Aliás, pensando bem, eu queria ter sido médico, escritor, pintor e artista. Eu queria mesmo ter sido meus filhos, o melhor que fiz com a vida.

À essa altura, emocionado, Ernesto se serviu de uma dose de vinho do Porto que seu filho trouxera na última viagem. Deitou a garrafa e deixou cair o líquido em porções num pequeno copo. Levou até a boca e degustou com os olhos fechados. Várias lembranças espocaram em bolhas na sua boca. Lembrou do nascimento dos filhos, da morte da esposa, da aposentadoria, dos últimos exames médicos que demonstraram que a saúde estava em dia.

Foram muitas lembranças e páginas preenchidas. Deixou, entretanto, algumas em branco a na última delas novamente escreveu: Me chamo Ernesto, moro sozinho, sou viúvo. Cecília, minha mulher, morreu cedo, me abandonou sem querer. Fiquei eu com dois filhos, meus tesouros, Ernesto Filho e Celso, esse com o nome em homenagem a mãe. São adultos, cada um com sua vida. O mais velho, médico, vivendo no exterior. O mais novo é artista, escritor e pintor, tudo o que eu queria ter sido. Aliás, pensando bem, eu queria ter sido médico, escritor, pintor e artista. Eu queria mesmo ter sido meus filhos, o melhor que fiz com a vida.

Esse mantra o seguiria até o fim dos seus dias.

Já adoentado, numa cama de hospital, Ernesto pediu ao filho de mesmo nome que lhe trouxesse a tal caderneta. O médico apressou-se em buscá-la, afinal sabia que seu pai não duraria tanto assim. Tomou nas mãos o objeto de capa azul e acabou, por curiosidade, lendo a última página, não teria tempo para tomar conhecimento de tudo que lá estava. Nada entendeu.

Entregou a caderneta nas mãos do pai que já não tinha mais forças para escrever, embora quisesse. Apressou-se em ditar ao filho: Me chamo Ernesto, tenho dois filhos … e por aí foi. Estava lá o mesmo mantra. Mas, dessa vez deu continuidade: estou muito doente, não tenho muitos dias de vida, mas agradeço a sua companhia, meu caderno azul, nunca precisei ler a última página. Você foi um fiel amigo todo esse tempo. Nunca me deixou esquecer quem eu fui.

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