Mário Sérgio
Já ouvi narradores e comentaristas justificarem derrotas, mal desempenho de clubes pelo estado ruim dos campos. Ora! O outro time jogou em campo diferente? Justificativas implausíveis que acalentam o coração de torcedores.
Nessas paraolimpíadas, Paris/2024, nossos paratletas fazem bonito demais outra vez. Existe expectativa de recordes de medalhas. Por duas vezes, já ocupamos o sétimo lugar no quadro geral de medalhas.
Muito além dessas vitórias, há um trabalho árduo, os atletas precisam vencer enormes adversidades ao longo de sua trajetória: falta de fé em relação às suas reais competências; dependência de terceiros para muitas atividades do dia-a-dia; dificuldade de conciliação financeira para sobrevivência; tratamentos; órteses e próteses; descrença de eventuais investidores. Não é apenas no Brasil. Diversos países também tratam com desdém o enorme esforço dispendido por esse recorte social, as PcD. A vida, quase sempre, é pensada para “endeusar” quem têm o privilégio de corpo e mente saudáveis. Todavia, há tanta beleza e valor naqueles que, mesmo com deficiência, se dispõem a lutar por um espaço de reconhecimento, uma existência de qualidade em que possam ser, por si e por outrem, mais do que apenas coadjuvantes. Esses paratletas são protagonistas do sucesso, exemplo para quem precisa dar a volta por cima, sair da zona de conforto e transformar em luz o equívoco de serem percebidos como “entrevados”.
Anteontem, 30, finalzinho da tarde, foram chamadas duas atletas para a final do Taekwondo. O narrador, como querendo apresentar justificativa prévia, aos moldes do futebol, dizia verdades incômodas, a meu ver, dispensáveis. Que a francesa, Djelika Diallo (nome de francesa?), vinha de duas viradas espetaculares; mais alta que a brasileira; a torcida francesa a seu favor…
Mas a brasileira era mais sorridente. Feliz por estar ali, disputando medalha de ouro em sua primeira participação em Olimpíadas.
Quatro árbitros, a principal, iraniana.
“Tem que tomar cuidado”. Dizia o narrador. Que a francesa tinha um ótimo contra-ataque, que sua altura a ajudava, que a torcida era toda dela…
Primeira punição. Ponto para a brasileira.
Ponto por golpe. Mais dois para a brasileira e, agora, parece que o narrador começa a acreditar.
Punição e golpe da francesa. Jogo empatado. Dá pra sentir pelo tom de voz e pelo ritmo da fala o desânimo do narrador, consolado pela convicção de, pelo menos, a prata estar garantida…
A luta prossegue. A árbitra interrompe para que as tranças da francesa sejam arrumadas no capacete. Preserva-se a concentração da brasileira.
Fim da luta. Ana Carolina vence com folga e comemora de um jeito inusitado. Chama a treinadora e a adversária francesas para comemorarem juntas. E vibra, abraça a estupefata francesa. Além da própria bandeira, traz para o tablado a bandeira francesa.
Que espetáculo maravilhoso. Que espírito vencedor, honrado. As dúvidas do narrador, enfim, se dissipam e ele vibra por mais essa medalha de ouro.
Acho que ele não atinou que a espetacular Ana Carolina é mineira. Em festa de mineiro o convite para comemorar é de coração e não aceitar é uma grande desfeita.
Parabéns guerreira Ana Carolina.
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Fonte:
Que lindo Mário Sérgio! Perfeita descrição do trabalho árduo, do amor e respeito ao próximo. Os PcD’s aprendem muito cedo a valorizar cada conquista! É delicioso ler seus artigos, aprendo muito com você! Obrigada por compartilhar.
“Devagar se vai ao longe, e quem chega primeiro bebe água limpa.”
Já se vê que esse narrador não conhece os mineiros, não ! Rsrsrs
Muito boa a narrativa, a impressão que eu tive é que estava assistindo o embate ao vivo. Parabéns as atletas e principalmente a você que nos proporciona uma leitura agradável e transparente!