Victória Farias
“Vou-lhe dizer um grande segredo, meu caro. Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias.”
Albert Camus
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Seu Zé não sabia o que lhe aconteceria quando acordou às 5h da manhã naquela sexta de carnaval. Não gostava de carnaval. Sempre muita gente, trânsito interditado.
Ele preferia poder gozar livremente do direito de ir e vir do seu caminho de casa para o trabalho sem interrupções.
Levantou cambaleando naquela manhã, tinha abusado um pouco da cerveja morna na noite anterior. Havia prometido que ia parar de beber, mas não se lembrava a quem tinha endereçado a promessa, por isso não se sentia no dever de cumprir.
Foi até o banheiro, escovou os dentes, fez o que a rotina diária o ordenava. Afinal, o dia pertencia ao normal.
O carnaval começaria de fato naquela noite, quando o Bloco Fúnebre, patrocinado pelos cemitérios de Belo Horizonte, invadiria as ruas para carregar as almas tristes de quem aparecesse pelo caminho.
O pensamento nisso lhe dava mais arrepios que assombração, por isso continuou o que estava fazendo no mundo físico.
Calçou os sapatos, pegou sua bolsa e o casaco, e saiu para o trânsito em nó. Não havia a quem falar sobre amor, por isso, ao fechar a porta, não disse nada.
A cidade estava exatamente como ele esperava e temia. Não sabia onde a confusão começava, e ela não fazia questão de acabar. Pessoas felizes, as do pior tipo – ele pensou. As do tipo que contagiam.
Por algum motivo, talvez de tanto ouvir da boca de quartos, Seu Zé sabia de cor o samba-enredo da São Clemente – o que era um ultraje. Ele não gostava de cariocas.
No trabalho, seus amigos estavam fantasiadas de todos os mundos possíveis. Filmes, livros, fotos de redes sociais, todos estavam reconhecíveis.
Zé não se reconheceu quando passou pelo espelho no saguão do escritório. Pensou que era um fantasma, e se fosse, sabia que o bloco daquela noite viria para pegá-lo.
Continuou sua rotina de trabalho, como dele era esperado. Reclamou no almoço que as pessoas estavam mais preocupadas em fazer festa do que em manter a comida quente.
Fez cara feia ao saber que seu colega de trabalho só lhe entregaria o relatório na próxima quinta. Ponderou depois sobre sua relação com ele. Não o podia chamar de amigo.
Fumou um cigarro que o queimou a língua por ter tragado forte demais. Estava desaprendendo a viver. Já não se sentia como antes, nos tempos de ouro, quando paquerava quem tivesse vontade nas áreas boêmias da capital – e ficava com todos. Hoje não tinha ninguém.
Quando levantou para ir embora, não fez nenhuma ligação para saber se era necessário comprar alguma coisa para levar do supermercado para casa.
Foi até o estacionamento, ligou o carro e pensou no que faria naquele momento. O relógio ameaçava matar os últimos minutos das 17h, e ele sabia que seu caminho para casa estava na rota do Bloco Fúnebre.
Aquele trio elétrico – que por coincidência divina tinha conseguido licença para circular – podia sentir o cheiro da desilusão, o mesmo que impregnava seu corpo.
O ronco do motor, que esperava calmamente por uma decisão daquele coração que beirava o desespero, consumia lenta e impiedosamente a gasolina – que estava uma fortuna. Zé sabia disso, mas não se importava.
Depois de entrar no carro e ser atingido por uma torrente de pensamentos, ele parecia não se preocupar com mais nada. Zé então o desligou. Percebeu, após muito ponderar, que teria que fazer o caminho todo a pé.
Não entendia do que tinha tanto medo, ou como uma coisa tão distante da sua realidade o atingia de uma forma tão brutal.
Na caminhada, viu casais usando as ruas como cômodo íntimo. Observou pessoas – que ele não podia distinguir – aproveitando daquilo que ele não sabia o nome. Um sentimento que não pertencia a ele.
Zé, nome de batismo José Roberto Vilanova, caminhou sem rumo por ruas que ele já conhecia, por isso não se importou em dar muita atenção a elas.
Quando notou, estava seguindo e sendo seguindo pessoas que andavam cabisbaixas, com as mãos nos bolsos, encarando as linhas do asfalto na avenida – pessoas exatamente iguais a ele, em todos os aspectos.
Seguiu essas pessoas até se esquecer para onde estava indo. Seguiu até deixar o seu casaco cair, e perceber que não mais lhe incomodava o frio. Seguiu até não ver o relatório do seu não-amigo na sua mesa na quinta, assim como prometido.
Hoje, eu cheguei para trabalhar e Zé não estava na sua mesa. Me preocupei momentaneamente, tentei ligar no celular dele, mas ele não me atendeu. Estranho – analisei.
Só me lembro de Zé ter se atrasado apenas uma vez, no tempo que eu trabalho com ele. Jurava que só o veria atrasar uma vez na vida, e uma vez na morte.