Daniela Mata Machado
“A disciplinária da escola anotou meu nome de novo e é possível que você receba um bilhete”, era Dora me informando, na hora do almoço, como quem não quer nada, alguma intercorrência que aconteceu na escola. Ela não cria problemas e eu quis entender o que tinha acontecido. “Usei o meu casaco rosa. E no outro dia ela anotou porque também usei aquela jaquetinha roxa”, falou. A escola só permite casaco branco, azul, vermelho ou preto. E ela tem um preto. “Eu gosto de variar, mãe. Por que eu tenho que ir sempre de preto?” Porque a escola exige, seria uma boa resposta. Mas, aparentemente, não é uma boa resposta para Dora. “Para que a disciplinária não anote o seu nome?”, perguntei. “Mãe, ela tem um caderninho e precisa anotar os nomes das pessoas nele. Eu tiro o casaco para entrar na escola e quando o visto de novo, lá dentro, ela vai atrás de mim para anotar o meu nome. Ela precisa anotar nomes em um caderninho e está tudo bem que anote o meu.”
Eu gostaria de ter a leveza de Dora, que compreende a necessidade de uma disciplinária anotar nomes em um caderninho, mas não deixa de usar nem o casaco rosa nem a jaqueta roxa. Ela gosta de variar as cores. Eu passaria toda a minha vida escolar usando um casaco preto, feio e sem graça, para que a moça não anotasse o meu nome num caderninho. Secretamente, teria muita inveja das meninas que suspendessem as blusas – improvisando croppeds – e desfilassem pelo pátio com um casaco rosa. Mas usaria o preto sobre uma blusa comprida e larga. Apenas para que a disciplinária não anotasse o meu nome. Apenas para que eu pudesse seguir invisível para as pessoas investidas de poder para vigiar e punir.
Quando eu trabalhava em redação de jornal, uma vez me disseram: “A censura vem de fora. A gente não deve censurar a nós mesmos.” Funcionou para os textos. No jornal. Nunca funcionou para a vida. Cá está, agorinha mesmo, o meu censor interno a dizer que estou completamente maluca de escrever este texto ridículo sobre o medo de ser julgada por quem quer que seja. Mas vou driblar o censor. Não sem antes enviar esta bobagem que estou escrevendo para meia dúzia de amigos em quem confio muito mais que em mim mesma: “Acha que posso publicar uma coisa dessas?”. Ou talvez nem mande. Publico na surdina. Sem mostrar a ninguém e torcendo mesmo para que esses amigos nem leiam, tamanha a vergonha que tenho de ser julgada absolutamente tola.
Hoje chorei ao me sentir profundamente incapaz, ao acreditar que nunca estou à altura do mínimo que esperam de mim e ao pensar que, mesmo cumprindo todas as regras, há sempre alguém à espreita para anotar meu nome. Mas algum serzinho lá no fundo do meu coração deu gargalhadas e piruetas quando se lembrou que Dora vai vestir um casaco rosa quando lhe der na telha e que, se calhar, vai oferecer até uma caneta cor-de-rosa para que seu nome ganhe destaque no caderninho da disciplinária. “Ela precisa anotar nomes em um caderninho e está tudo bem que anote o meu.” E há quem creia que são os pais que ensinam aos filhos…
É assim mesmo, vamos encolhendo, para que os outros possam ditar as regras que devemos cumprir. Carregamos essa herança transgeracional, e que sofremos os resquicios ainda hoje, de uma ditadura que causou sequelas profundas. Minha memória trás no aqui agora…caminhando e cantando e seguindo a lição, somos todas iguais braços dados ou não, nas escolas nas ruas, compos, contruções…