Tempo, tempo, mano velho
Falta um tanto ainda, eu sei
Pra você correr macio
Fernanda Takai canta no Spotify, enquanto observo, na parede da sala de estar, entre a janela e uma estante vermelha, o relógio de badalo que herdei de minha mãe, cujos ponteiros frequentemente se adiantam. Agora mesmo, o celular me informa que são 8h56, mas o velho relógio – cujo pêndulo faz um tique-taque incessante, ainda mais perceptível quando todos dormem – me diz que já são 9h30. Todos os dias, abro a portinha de vidro e acerto seus ponteiros. Às vezes chego a fazer isso duas, três vezes ao dia. Tenho uma vaga memória – mas talvez ela me traia – de que minha mãe também fazia o mesmo. O velho relógio me lembra, várias vezes ao dia, que o tempo pode ser um trem desgovernado e que nem sempre teremos a chance de retardar a marcha dos seus ponteiros.
Não consegui encontrar nenhuma fonte confiável que me informasse, com precisão, quem foi o primeiro ser a proferir a frase “tempo é dinheiro”. Há umas referências de ela que teria sido dita pela primeira vez – na sua versão em inglês, “time is money” – por Benjamin Franklin, em texto para jovens empreendedores norte-americanos. A ver. Tornou-se uma frase tão gasta pelo uso, que a tomamos por verdade. No entanto, tempo não é dinheiro. Ou, ainda que seja, não deveria ser.
Tempo são os ponteiros do relógio que todos os dias adiantam e todos os dias eu torno a atrasar. Tempo é a memória daquela goiabeira que talvez tenha sido cortada por alguém que decidiu cimentar o terreiro para facilitar a limpeza. Tempo é o momento em que se decidiu acreditar no ousado projeto de permanecer na praia, vendendo colar de miçanga e aplaudindo o pôr-do-sol, e nunca mais voltar para o escritório onde as horas pareciam tão opressivas. Tempo é a preguiça na rede, ouvindo Jacques Brel e recitando Boris Vian no calor escaldante do litoral baiano.
Tempo é a barriga crescendo e abrigando outra vida. Outro tempo. Tempo é o breve instante em que o relógio apressado parece aquietar o pêndulo, suspendendo o tique-taque, para que a gente possa ver um alvorecer no mais absoluto silêncio. Tempo é a festa de aniversário de 9 anos, com todas as crianças da rua cantando parabéns e se empanturrando de brigadeiro e guaraná. É a risaiada dos primos, contando piadas e histórias de terror. E descobrindo o amor.
Tempo é o encontro fortuito, às duas da tarde de uma quarta-feira, atravessando uma avenida movimentada no Centro da cidade e transformando um dia comum na memória mais especial que se terá na vida. Tempo é o choro escondido. São os beijos roubados. As fugas com o circo. Os arroubos de amor ou de ira. Tempo são as conversas sobre o tempo. É a prosa política que vara a noite, com pausas para recitais de poesia e canções entoadas sob o efeito encorajador do vinho, enquanto alguém dedilha o violão. Tempo é o porvir, que será sempre tão bonito e alentador. Tempo é o alvorecer que a gente espera.
Tempo é aquele hiato aberto na vida quando a gente se apaixona e jura por tudo o que é mais sagrado que poderá, para sempre, viver só de amor. E o tempo se abriga no quarto, onde a simples presença do outro preenche tudo. Tempo são as juras de amor eterno. É a eternidade de um instante.
Tempo é o abraço coletivo dos amigos que prometem caminhar juntos para sempre. São as histórias que eles vivem e que povoarão as memórias de uma vida inteira. O tempo é a vida inteira. Pode ser que haja outras. Espero que sim. Mas, nesta aqui, o tempo está correndo. E talvez não haja uma porta de vidro no relógio da vida para que possamos meter os dedos e retardar os ponteiros.
Tempo também pode ser dinheiro. Mas tenho cá pra mim que é melhor que não seja.