O luto de novo.
O doutor de jaleco branco estipulou:
– Se isso demorar mais de três meses a passar, a gente vai precisar entrar com a medicação.
Seu Luiz se assustou com o prazo e nunca mais voltou.
Ontem seu Luiz assistiu a um programa de TV sobre a cidade de Paris, o que o transportou no tempo-espaço. Não para a Torre Eiffel, o Notre-Dame ou o Louvre. Mas para o pequeno e antigo apartamento na Rue San Martin onde vivera com a família no início dos anos 1980. Os olhos marejaram, a voz se fez trêmula.
Tinha sido um tempo feliz. Os meninos pequenos, a esposa ainda saudável, os poucos mas bons amigos, também imigrantes, da universidade, que partilhavam o convívio e os jantares. Os aromas, as receitas, o vinho barato. O croissant fresco da esquina que a mais velha chamava de “pastel francês”. A vida cotidiana, ordinariamente humana e demasiadamente feliz.
Ao narrar tais memórias, a emoção transborda do coração para a pele e da pele para os olhos. Lágrimas. Seu Luiz segura, disfarça, tenta desviar o assunto para o céu que começa a se fazer nebuloso:
– Será que vai chover?
Penso que sim, uma chuva de lágrimas represadas por chronos. Este ano fará 25 anos que dona Joana se foi. Um câncer fulminante que lhe roubou a saúde, a juventude, o futuro. A tristeza, o medo, a incerteza, a angústia.
Hoje a dor não dói mais na carne nem no peito.
Hoje a dor dói nas memórias.
A saudade. O pesar. A gratidão.
O tempo do luto definitivamente não é o de chronos, do calendário, do relógio. Não é um tempo imperativo de prazos e prescrições. O luto é a morte do tempo.
Ele acontece no entre, nos intervalos, nos vazios e brechas da vida. No encontro da empatia com a disponibilidade de escuta.
O tempo do luto não é linear. É labiríntico, espiral. O tempo do luto é atemporal, é tempo kairós, subjetivo, abstrato, intangível.
O luto não é doença. Ele é integrado em cada intimidade de forma muito particular, em uma delicada construção de sentido. Equilíbrio dinâmico.
E tem gente que não entende nada desse assunto.
Nem de humanos, nem de meteorologia.
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