A pomba

Leonardo Paixão

Era uma terça-feira, dia pouco especial. Daqueles que lentamente somem da memória. De pouco em pouco se dissolvem nas lembranças esquecidas. Não fosse ela, essa terça seria mais uma. A vida é feita de dias comuns. Viver é algo extremamente repetitivo.

Talvez por isso ela tenha vindo ao prédio.

Havia um pedaço da garagem em reforma. Um local desconfortável. Chão quebrado, poeira, entulhos. Estar “em reforma” não depende de que a mesma aconteça. O status dura enquanto houver o desalinho. Aqui, há mais de um ano, nenhuma alteração.

A pomba não escolheu um local quebrado. Adoentada e envelhecida, caminhava em círculos na vaga central. Fazia frio. Talvez tenha buscado o calor do motor do carro recém-chegado. De penas desgrenhadas e sujas, trôpega. Estaria na muda? Ou era um animal “em reforma”?

De início, tentou bicar alguns miolos de pão jogados pela vizinha idosa. Com o passar dos dias o olhar ficou mais distante. Sua nova casa, a vaga do apartamento 501. Com o tempo já não reconhecia o alimento. Sozinha, sob o Volkswagem do quinto, aguardava.

Nos últimos dias parecia arrancado da pomba o plugue de conectar ao mundo. Andava sem rumo, dois passos e uma cambalhota. Não uma cambalhota engraçada. Era trágica. Aguardamos. Morrer parecia tão, ou mais complicado que o próprio viver. Era como se saísse deste mundo por um buraco mais fino do que ela, apertado, trabalhoso. Até que um dia, finalmente, se foi. O corpo contorcido de uma partida custosa jazia, como sempre, na vaga do quinto andar, longe da bagunça da obra.

Era terça. Os últimos dias não haviam sido tão comuns. A agonia da pomba deixou uma pequena marca na memória, como um papelzinho nas páginas de um livro. Em algumas horas seu corpo já havia sumido. “Deve ter sido um vizinho que tirou antes que comece a feder”.

Já bastava de dias incomuns. Agora o dia a dia poderia, confortavelmente, retornar à sopa uniforme de memórias inespecíficas.

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