Rosangela Maluf

Boneca é uma moradora do Cafezal, uma das comunidades da Serra.

Há muitos anos, quando morei pela primeira vez à rua Capivari, estranhava aquela menina loura, de cabelos anelados, sempre muito arrumadinha, falante… chupando chupeta. Ela deveria ter uns doze anos àquela época e era conhecida por todos. Não sei ao certo, mas parece que teria duas irmãs e morava com a mãe, já que o pai se fora quando ela, a caçula, nasceu.

Aos poucos, aquela mocinha foi criando uma certa barriga que crescia a olhos vistos. Sim, aos 13 anos a primeira gravidez e aos 14, teve o primeiro filho. Contou para todo mundo, era um menino. Não sabia que nome colocar e pedia sugestão a todos os presentes na Padaria. E a nova mamãe continuava a levar, no peito, uma chupeta, pendurada em um barbante imundo. Ou seja, a mamãe também chupava chupeta!

O tempo passou.

Mudei-me de BH e quando voltei de novo para a rua Capivari, vi pela janela Boneca passando do outro lado da rua. Já não chupava chupeta. Os cabelos encaracolados, louros, agora eram alisados meio lisos nas pontas e anelados na raiz. De longe percebi uma barriguinha. — É mais um filho a caminho, vai interá três! Disse a minha antiga faxineira que a conhecia lá do morro, onde ela cantava, dançava funk e até fumava maconha nas festas de sábado, além de dar para qualquer um!

Mais de vinte anos se passaram. 

Morei em algumas cidades e voltei pra BH, novamente na Serra, bairro que gosto muito. Não me vejo morando em outro lugar. Por aqui tenho tudo perto, a menos de um quarteirão encontro tudo que preciso. Na Padaria aonde sempre vou, encontro Boneca na porta. Sentadinha, pedindo dinheiro para almoçar. Quase não acredito no que vejo. Aquela adolescente de quem eu me lembrava deu lugar a uma pessoa irreconhecível. As funcionárias me falaram dos vícios, das inúmeras vezes levada à prisão, pedindo esmola, sempre ali. Quase todo mundo já sabia que podia ajudar com pães, biscoitos, leite, bolos, mas dinheiro, não: seria todo ele gasto com crack.

O tempo implacável, as drogas, a vida difícil, tudo isso contribuiu para que eu sentisse um aperto enorme no coração.  Diante de mim, pedindo um almocinho, estava Boneca. Nada sobrara da menina de antes. Agora, a cabeça raspada. Sem nenhum dente. Magérrima, esquelética. Roupas em trapos. Imensa e profundamente me comovi com o que presenciava ali. 

Pedi uma quentinha na Padaria e fui eu mesma entregar. Agradecida, ela me olhou, olhou, olhou até que resolveu comer. Deu duas colheradas e me disse que levaria o resto para os dois filhos que moravam com ela.

— Quantos filhos você tem, boneca? 

— Dois moram comigo, tive mais dezesseis, tudo que dei pruzôto.

— Continua morando no Cafezal? — Eu pergunto.

— Até hoje no mesmo lugar. Casei, durou muito não. Casei de novo, era um sujeito do mal. Separei. E sabe na semana passada? Mataram o Carlin com dois tiros!

— Carlin era seu marido? 

— Era sim. Um homi bão, mas mexia com droga: crack, maconha, doce, essas coisas. Deu de juntá com dois polícia. Divisão de dinheiro. Ele deve de ter reclamado. Pá, pá: dois tiros que pegaram no peito dele, aqui assim, direto. O sangue desgraçou a escorrer. Um vizinho que tinha carro, levou eu mais ele para o Pronto Socorro. Foi tarde, Carlin já tava morto.

— E agora, o que você vai fazer da sua vida? 

— Agradecer a Deus que tô viva. Com dificuldade vou seguindo até arrumar gente boa e decente que queira meus fio. Agora são só dois. Vai ser difícil não. São bunitin os danadin.

— Olha vou deixar com as meninas da Padaria uma sacola para você. Nada de vender as coisas e comprar droga, viu?

— Ô Bonita, tô fora disso. Pode me acreditá. Tô limpa.

As meninas da Padaria piscaram os olhos e então percebi que o vício ainda permanecia e que certamente a minha doação de roupas & alimentos seria vendida, renderia um dinheirinho, direto para os bolsos dos traficantes.

E o que mais eu poderia fazer pela Boneca? 

Bem pouco, quase nada.

(Enxugo uma lágrima que insiste em cair!)

rosangelamaluf

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  • A verdade do q vemos hoje num mundo q Deus criou bom é os homens maus estão destruindo,parabéns Rosângela pelo verdadeiro conto.

  • Boa tarde Rosângela. Quão triste a vida real de alguém que atende por: Boneca. Infelizmente, a única coisa bonita que ficou de uma pessoa que você descreveu no início do conto, foi o nome/ apelido, né? Mais triste ainda ,é a certeza de que neste mundo de Deus, existem muitíssimas “ bonecas”na mesma situação desta.E a gente continua impotente, a enxugar as lágrimas que teimam em cair! Parabéns pelo texto, como sempre, súper!

  • Uma história triste, retrata uma realidade cada vez mais frequente neste mundo. E um círculo vicioso que dificulta as possibilidades de mudança.

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