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Recolhimento

Peter Rossi

Diante da ameaça de nova mudança de rumos pelas quais estamos sujeitos a passar, dessa vez por causa da dengue, mergulhei nos sentimentos vividos por todos nós nos últimos anos.

À minha direita uma janela fechada. Ouço através dos seus vidros, o barulho de uma chuva insistente.

Isolado de frente ao computador, fico pensando no que resultou todo esse recolhimento a que fomos convidados pela vida. Vem-me à mente a fala do poeta Vander Lee, na incrível “Onde Deus Possa Me Ouvir”:

Sabe o que queria agora, meu amor?
Morar no interior do meu interior…

Nós, compulsoriamente, fomos levados a tal. Mas o pior que não nos convencemos da conveniência de tudo isso. Dentro do espectro mais funesto daqueles tempos inusitados, nos restou a oportunidade inadiável, isso pelos mais diversos motivos, de nos recolhermos em nós. Que oportunidade incrível!

Tudo isso nos mostrou que nem todas as necessidades são dignas de epítetos. Podemos ir mais devagar com o tempo, dar pouca corda no relógio e, ainda assim, as coisas correrão.

Mesmo a chuva que antes caía aos cântaros, agora desacelera. Esse é o convite, o toque. Aprendemos naquela ocasião que poderíamos experimentar o mais devagar, com tempo pra ver, da mesma janela, cada detalhe do lado de fora.

Deixamos de simplesmente olhar. Os olhos não piscam, focam. Com a letargia do descanso pudemos até tentar corrigir aqueles erros que insistíamos em simplesmente encobrir. Umas passadas de borracha, com todo cuidado, foram implacáveis para tais retomadas de rumo.

A comida há de ser feita em fogo baixo. Poucas luzes acesas, movimentos lentos e ritmados. Tudo isso nos faz bem. O choque traz uma expectativa louca que, contudo, é contida pelo ruminar da boa ideia. E não é que ficar aqui, ainda que fazendo aquele trabalho, é tudo de bom? Fazer uma reunião virtual de cuecas. Sensacional! Durante toda a nossa vida, imaginamos que o Cid Moreira só usava o paletó, a camisa e a gravata. De resto só uma bermuda. Isso fazia parte do imaginário popular.

Vem à minha memória a música do Almir Sater chamada “Tocando em Frente”, quando ele diz

Ando devagar porque já tive pressa.

Que oportunidade de ouro! Deixar de lado a nossa pressa irrequieta. Mas o mundo parou, as rotinas foram deixadas de lado. No meio do medo, passamos a imaginar a esperança, e isso é maravilhoso. O dia-a-dia se tornou um dia só, dentro de nós. Enfrentamos com coragem e fé. Cumprimos os rituais mais elementares – ficamos quietos!

E nessa quietude escutamos mais os passarinhos que não desafinam. Eles já vivem nessa quarentena de paz. E que paz, no meio do caos!

São danos irreparáveis que nos fizeram reparar que em qualquer parte do planeta somos iguais. Todos estamos dentro de nós, seja qual for o fuso horário.

Passamos a desfrutar da falta dos beijos e isso, apesar do dissabor, só nos fez experimentar a delícia da ausência e nela planejar o futuro de nossas bocas. Quantos beijos daremos!!!

Lembro-me, nesse momento, da enigmática fotografia do marinheiro voltando da guerra, beijando apaixonadamente a enfermeira, em plena Time Square. Ali foi a comemoração do fim do holocausto! Quantos beijos foram dados a celebrar o final desse susto?

Artistas famosos a cantar nas janelas, para quem quiser ouvir. Assisti aqui, olhos marejados, um vídeo de José Carreras cantando na sacada de sua casa, metido num roupão azul. Que voz! Ao término, janelas apinhadas de pessoas. Garis parados a olhar pra cima, em uma rua qualquer de uma cidade espanhola. Os pulmões do tenor a expulsar baforadas de solidariedade que alcançavam as almas alheias, através do ouvido. Uma serenata num final de manhã num mundo assustado.

Vi treinadores dando aulas de condicionamento físico em varandas. Contadoras de histórias a narrar épicas aventuras aos meninos vizinhos, pelas sacadas.

Tudo isso só prova que somos muito mais, quando recolhidos em nós mesmos. E, encismados, dividimos o que nos é de melhor, ou alguém tem dúvida de que José Carreras nasceu para cantar?

Tudo isso é morar no nosso interior e de lá extrair, dos fundos dos diversos baús de nossas vidas, as mais belas passagens. Juntar as duas mãos em forma de concha e lançar, como confetes, sobre a rua vazia. As gotas de papel, no sobrevoar do vento, a alcançar olhos atentos que nada mais estão a fazer do que admirar. O côncavo e o convexo, lado a lado, a se espelhar.

Vander Lee tinha razão, morar no interior do nosso interior é o melhor que há, ainda que de passagem.

Nesse momento em que escrevo, a chuva parou. Não preciso sequer olhar para a janela. Meus ouvidos estão aguçados com o parar do tempo. Hoje somos todos gatos, a andar pela casa com cuidado, sem fazer barulho.

Partilhamos nossas ausências com quem amamos, sem perceber que nunca fomos tão presentes, ainda que distantes. Se não pudemos abraçar, sentimos. Se as mãos não alcançaram, os corações serviram de ponte. O fato é que nunca pensamos tanto naqueles que queremos bem.

De fato, renascemos. E as ondas, sabe-se lá de onde emergem, sempre nos trazem novidades. Hoje, alguns mais velhos, outros ainda crianças, aprendemos que podemos ir pra qualquer lugar, sem mover um músculo sequer. Podemos ser nós mesmos, melhores até, sem que o esforço seja tanto. Somos originais, sem obedecer a métodos pré-concebidos, somos nós em nossas melhores versões.

Da fumaça do extermínio nasce o sol em nossa realização. Experimentamos que tudo podemos do lado de dentro da janela. No ínfimo espaço de nossas casas alcançamos os mais agudos decibéis. Estamos conhecendo os recônditos espaços de nossas entranhas, que esquecemos justamente porque o despertador a gritar pelo novo dia nos intimava a pular da cama.

Nada disso! Fiquemos mais alguns minutos envoltos nas cobertas, abraçados aos nossos gatos, cães, filhos. E tratemos de pensar num dia melhor, sem os sobressaltos do trânsito, os gritos das ruas apinhadas de gente. Pensemos em alguma forma de, lentamente, encontrar um motivo maior para calçar nossas chinelas. Sem pressa, com calma!

Tomemos o banho demorado e morno, aproveitando cada um dos pingos do chuveiro. Ao passarmos a manteiga no pão, tratemos de fazer o trabalho de um pintor, com afinco, não deixando um pedacinho sequer a descoberto. E mastiguemos, sem pressa de engolir. Dando a nossas papilas a oportunidade de conviver com aquele sabor tão bom!

Em seguida alcancemos nossas janelas, nossas sacadas, nossos sóis. Nossa solidão nos remete ao mundo, ainda que de longe. Nunca pensamos tanto no outro, nos demais.

Nossos corações, longe de estarem vazios, se encheram de novidades tão comuns, esquecidas atrás das cristaleiras. Reparem, estivemos arrumando nossos armários, e isso não é para passar o tempo. Ao contrário, é pra mostrar pro tempo que temos muita coisa importante pra fazer, apesar da sua lentidão.

Esse tempo morno só nos faz pensar no bem. Apesar de apreensivos, em casa, entrincheirados, nos pegamos a pensar em como podemos fazer o melhor, como podemos compartilhar.

Os dias começavam calmos e calmos adormeciam. Nós, embalados nessa rede de paz, esperamos o mal ir embora. Ele sempre vai, não tem pouso, sobretudo quando nossos corações estão tão plenos. Estivemos assustados, mas sempre fortemente esperançosos de que tudo iria passar e naqueles momentos letárgicos, emergimos.

Nossa solidão nos atrai, nos distrai, nos enfatiza. Olhando mais uma vez pela janela, agora que a chuva passou, me lembrei de ter visto dezenas de pessoas como eu, só esperando o vizinho chegar de longe sobre as luzes das varandas. Foram acenos, abraços à distância. Foram cartões postais entregues pelos sorrisos.

Essa onda doida passa. Na vida, tudo passa! Alguns ficarão. Sobreviverão lamentos, com certeza. Perdas irreparáveis. Mas esse é o rodar da engrenagem. O mundo é muito menino ainda. Deita no colo da incerteza e recolhe sua insegurança, esperando o dia amanhecer. E o dia sempre amanhece, estejamos nós ou não do lado de dentro da janela.

Aproveitemos as gostas de paz com as quais a chuva respingou nossas janelas. São tão lindas …

A banda Capital Inicial já dizia

Fica o gosto, ficam as fotos
Quanto tempo faz
Ficam os dedos, fica a memória
Eu nem me lembro mais.
Quanto tempo, eu já nem sei mais o que é meu
Nem quando, nem onde
Tudo que vai
Deixa o gosto, deixa as fotos
Quanto tempo faz

Hoje lembramos de toda essa loucura. Contaremos aos nossos filhos, nossos netos. Os livros de história dedicarão capítulo especial a tudo isso. E ficaremos nós, porque sempre ficamos. E melhores, nos conhecendo mais. Mergulhados em nossas margens, desbravamos o nosso interior como nunca antes fizéramos.

É muito interessante notar que as catástrofes trazem na nossa alma as melhores condolências. Referências tristes a servir de marco para a sobrevivência e por tempos melhores.

Alcançaremos o fim de tudo isso, mergulhados em nosso eu mais profundo. Somos mais do que imaginávamos. Pena que as idiossincrasias da humanidade nos imponham penas tão severas, a nos fazer emergir.

Mas temos fôlego suficiente. Na linha d´água avistamos o horizonte e nossos corações, inflados, nos servem de botes.

Vi tudo isso. Sei que vocês também. Estava tudo ali, desenhado nos respingos que a chuva cuidou de deixar em nossas janelas.

Blogueiro

View Comments

  • Meu querido e saudoso amigo Peter.
    Coincidentemente, hoje falamos muito de você, pois é o aniversário da eterna Ana Clara “saladinha”, apelido que nunca mais desgrudou.
    Sim, os anos passaram, mas as suas palavras ora ditas descreveram a viagem que eu também fiz. Fui para o interior do meu interior, e hoje sou eternamente grata por ter vivido a pandemia e por ter lido este texto maravilhoso.
    Muito obrigada por tudo isso
    Bjs

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