No fundo no fundo, a vida é mesmo muito estranha e carrega os seus insondáveis mistérios. Na última segunda-feira o existir me colocou diante de uma armadilha do destino. Por sugestão de uma professora, me candidatei para dar uma aula sobre “Felicidade” aos meus colegas de mestrado. Tarefa basicamente simples: ler o texto de suporte, elaborar uma apresentação, fechar algumas “sinapses” e fazer a exposição do conteúdo durante a aula, que está acontecendo na modalidade virtual.
Entre teorias antigas, conceitos hipermodernos, definições infinitas e aplicações práticas no cotidiano, eu me peguei pensando se não seria uma extravagância debater o enigma da felicidade num contexto social tão sombrio, de tantas tristezas e incertezas.
Não seria um excesso pensar em ser feliz, em ter momentos de alegria e de prazer, em querer uma vida boa, equilibrada e em paz num momento em que todos “só” precisamos sobreviver? Pensar a felicidade agora não seria supérfluo?
Acredito que talvez a resposta seja negativa. Debater e esmiuçar a felicidade não se faz desimportante, pois, em primeiro lugar, é somente na definição possível e singular do conceito dentro de nossa própria subjetividade que saberemos reconhecê-la. Por ser efêmera, fugidia, a experiência da felicidade precisa estar ancorada em nossas próprias referências para ser vivida.
Em segundo lugar, estamos em uma época em que a felicidade é também despótica e imediatista. A obrigação de ser feliz no momento presente é uma tirania que pode nos ludibriar e nos assujeitar. Diante de tantas receitas prontas e modelos de consumo ilusórios que reforçam uma cultura excessivamente hedonística, é preciso exercitar o adiamento e reconhecer o que é verdadeiramente autêntico e digno de sentido nesse mundaréu de infinitas possibilidades de realização.
Em terceiro lugar, frente à toda abrangência eclética das felicidades possíveis, é fundamental reconhecer que não existe uma existência dissociada da falta, da angústia ou da dor. Elas nos são constitutivas e nos preservam de idealizações. A felicidade é mesmo contraditória e paradoxal.
A felicidade é uma abstração da modernidade que pode ser sinônimo de conforto material, de realização no campo amoroso, de exercício da liberdade e da autenticidade. Às vezes vem transvestida de sabedoria e de equilíbrio. Ela pode ser um estado de alegria, de lucidez, de paz. Ela nos visita quando quer e foge quando desejamos controlá-la.
A felicidade nunca é solitária. Ela não acontece sem a presença do outro e sem a mediação de nossa própria consciência. E hoje, ela anda de mão dada com a esperança. Hoje, poder respirar é uma suprema felicidade. Hoje, eu sinto que a felicidade anda me rondando. Ela me flerta, mas eu disfarço, finjo que não a vejo, só para mantê-la por perto.
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Fonte:
- LIPOVETSKY, G. Homo felix: grandeza e miséria de uma utopia. In: A felicidade paradoxal. 2008 – São Paulo: Companhia das Letras, 2007