Peter Rossi
Dinho não era um morador de rua, como tantos outros. A condição em si soa até repugnante, mas a veracidade do que representa é um soco na boca do estômago de todos nós. Deveria ser proibido morar na rua, dormir ao relento, sem mínimo conforto. Como certa vez disse o compositor baiano “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. Dormir ao léu só se for pra admirar a lua… e as estrelas.
Mas, às vezes, as vielas traçadas por nossas próprias escolhas, ritmadas a boa dose de má sorte, acabam por jogar o indivíduo no mundo de ninguém.
Era assim com Dinho. Apesar da absoluta necessidade e precariedade, ele acabava sendo adotado por um e por outro. Um servicinho aqui, outro acolá, e ia levando a vida. Nunca tivera uma cama pra dormir, seu catre era, invariavelmente, o chão. Se contentava com as sobras dos restaurantes e dos supermercados. Vivia a mexer nas latas de lixo, procurando alcançar algo minimamente digno pra se alimentar. Alguns estabelecimentos, sabedores de sua existência na região, já deixavam folhas de verdura, sobras de carnes e outros alimentos devidamente ensacados. Tentavam entregar pessoalmente ao Dinho, mas ele se recusava a receber, preferia buscar nos descartes. Havia nele um certo pudor, como a lhe envergonhar pela vida que levava. Nada mais injusto, Dinho era um vencedor. Apesar do estado de penúria, nunca avançou na propriedade alheia, seja por qual motivo fosse. Preferia ser um caçador de recompensas, lamentavelmente nas latas de lixo.
Dinho saía pela cidade em uma pequena carroça, puxada pelo seu cavalo, o Bainho. Sempre ao lado estava o cachorro blackout. O nome, certamente, não foi dado por Dinho, mas sim por algum dos turistas que sempre estão no lugar. O apelido fazia jus ao animal: um cachorro sem raça definida, porém robusto, com a pelagem toda negra. Um belo exemplar.
Blackout não abandonava Dinho em nenhuma hipótese, ao contrário, estava com ele o tempo todo e a todo tempo.
Perto das quatro da tarde, lá ia o Dinho, em cima da carrocinha puxada pelo Bainho. Blackout, ora seguia ao lado do homem, noutras vezes marchava ao lado da roda da charrete.
Dinho levava uma lata grande de tinta, sempre limpinha, para acondicionar as suas descobertas. Sobre a charrete uns trapos que um dia foram uma blusa de lã, um botijão de gás vazio, sem mínima utilidade. Alguns defendem que aquele botijão é a exteriorização, para Dinho, que mais se aproximava de um lar, que ele nunca teve. O botijão talvez preenchesse essa lacuna, mas ninguém nunca lhe perguntou.
Dinho sempre com a mesma roupa, repetia o mesmo itinerário. Seguia com a carroça e os animais e parava diante das cestas de descartes dos estabelecimentos. Fuçava daqui e dali e extraía alguma coisa para comer. Colocava na lata e seguia em diante. Os animais, parados, só observavam. Muitas vezes, de dentro dos restaurantes, os proprietários e garçons também ficavam a observar tudo aquilo. Bainho, de cabeça baixa, como a tirar uma soneca e blackout deitado no chão.
Algumas mudanças aconteceram, alguns restaurantes fecharam as portas, enquanto outros eram inaugurados. Também um novo supermercado chegou para a região. Dinho continuava a sua toada, mas a partir de então nem todos os conheciam. Eram novos no pedaço.
Volta e meia, quando estava mexendo no lixo, alguém chegava perto para ralhar ou reclamar com o pobre coitado. Era quando o trabalho em grupo acontecia. Parecia ser tudo orquestrado, vai ver que de fato era.
O indivíduo chegava perto do Dinho e, imediatamente blackout começava a latir. Sua intenção era distrair aquele que estava reclamando do seu dono e ainda acordar o bainho de sua soneca. Pronto, era o que bastava! Blackout latia e bainho se aproximava do reclamão e quando ele menos esperava, recebia um coice na altura do estômago. Num segundo as coisas voltavam ao normal, bainho com a cabeça baixa, blackout deitado no chão e Dinho mexendo no lixo. O coitado do dono do restaurante, ou quem quer que tivesse abordado nosso herói que se arrependesse, não sem antes conviver com uma dor profunda que jamais o impediria de esquecer aquele imbróglio. E a vida seguia assim, normalmente assim.
Passados alguns anos, Dinho já não está mais com os amigos, um câncer fulminante no pulmão o levou em poucos meses. Blackout já era um cão idoso àquela época, também já se foi. Resta apenas, dos protagonistas desta história o Bainho. Depois da morte de Dinho, foi adotado por um amigo que lhe deu comida e abrigo. Hoje já não tem tarefa alguma, vive a pastar no sítio, pras bandas de onde Dinho vivia. Mas não é de muitos amigos, prefere ficar sozinho. As poucas tentativas de relacionamento foram dispersadas com coices no ar. Ninguém chega perto do animal, que caminha silencioso pelo sítio, a esperar sua vez. Com certeza, entre um pasto e outro estava a recordar das peripécias vividas com os amigos. Também pudera, não era mesmo pra esquecer.