O relógio na parede

Rosângela Maluf

 

Quando a vó morreu, sendo eu a neta mais velha, herdei dela o relógio cuco. Contava a minha avó que o vô ganhara de seus pais, que por sua vez ganharam de presente de casamento, ainda quando viviam na Alemanha, nem se sabe há quanto tempo!

O cuco já não abre mais a janelinha nem canta mais. Eu não quero ouvir cuco nenhum cantando nem quero levá-lo para consertar. O que me importa é que ainda marca as horas com seu tic tac barulhento, com o qual já me acostumei. Assim que acordo e abro os olhos vejo o relógio na parede.

Tic tac tic tac…e lá vou eu correndo, sempre atrasada, sempre com um compromisso urgente, sempre com algo importante por fazer, pessoas por encontrar, reuniões, visitas, uma agitação constante. Telefone que toca, celular que me chama, zap zap aos montões e lá vou eu para mais um dia de luta – quanta luta, meu deus!

No entanto, hoje é domingo. Chove muito e o dia cinzento e frio não me deixa sair da cama. Nenhum compromisso, nenhuma visita, nada. Olho o relógio. Nove horas e cinco minutos.

Espreguiço-me gostosamente, vou ao banheiro, tomo água, abro a cortina. Poucos carros, pouca gente, pouco barulho, nenhuma pressa, fecho a cortina e volto para cama. O cuco alemão está lá tic tac tic tac.

Não quero ler. Não quero ver filmes na TV. Não quero abrir o computador. Não ando curiosa para saber quem curtiu o que publiquei. Não me interessa quem já postou mensagens, fotos, vídeos, aquela mesma chatice sem fim. Quero um chá. Sim. Uma caneca bem grande. Com açúcar mascavo. Chai indiano, com leite. Yes!

Com o chá saindo fumacinha volto para cama. O relógio marca nove horas e quarenta. No criado-mudo procuro um CD. Uma música bem calma. Relaxante. Vivaldi. Sim, pode ser. Tenho inúmeros. Gosto imensamente de violino. Adoro Vivaldi. Nada de Quatro Estações. Existem peças maravilhosas. Músicas lindas além da primavera-verão-outono-inverno! Volto para a cama quentinha, debaixo do edredom. Ligo o celular…

Que preguiça: dezenas de vídeos, os mais chatos e desimportantes do mundo. Acho que estão todos no whatsapp. Mensagens, fotos e mais fotos de bom dia, bom domingo, agradeça a deus, não peça nada…e eu não peço!

Deixo o celular sobre a mesinha de cabeceira e já são quase dez horas, faltam cinco minutos. No silêncio do apartamento, tic tac tic tac.

O quentinho da cama, o calorzinho das cobertas, o barulhinho da chuva, Vivaldi bem baixinho. Ah, que sono me deu! Me enrosco novamente em minha manta florida e tiro um bom cochilo. Acordo meia hora depois, com mais preguiça ainda. Até o Thomas veio se deitar entre as minhas pernas.

Ele também deve estar desanimado, não posso abrir a janela e ele não pode sair andando por aí. É um gato muito independente e raramente fica calmo assim. Pego o Thomas no colo. Pertinho de mim. Converso com ele. Faço carinho e ele ronrona feliz.

Levanto e o relógio na parede marca quase meio dia. Tic tac tic tac .Vou novamente ao banheiro e com o Thomas nos braços vamos, os dois, até a área de serviço: troco sua areia, coloco mais ração e encho o seu coxinho com água limpa. Duas bolinhas de borracha. Fios de lã. Uma lixa colada no azulejo. Tudo por ele e para ele. É um sortudo este lorde inglês.

O tic tac se faz ouvir enquanto estou na cozinha. Tenho fome, mas não muita. Também não tenho muitas opções. Bananas, torradas, mussarela e ovos. Pronto. Ligo a TV. Eca. Vou zapeando para cima e para baixo e nada me apetece. Volto para cama e abro o computador. Os jornais do dia. Filmes. Facebook.

Pego o livro que estou quase terminando de ler e vou para o sofá da sala. Tic tac tic tac. Uma hora. Nem abro o livro e começo a admirar o velho relógio. Olho para ele como se nunca antes o houvera visto. Há mais de cinco anos ele se encontra no mesmo lugar, sem que saia o cuco que anuncia as horas, sem o piado típico do passarinho cantante mas é um objeto lindo.

Fico pensando no artesão que, em uma única peça de madeira, realizou esta obra utilizando, quem sabe, as ferramentas mais elementares para formar os desenhos, desenhar os cachos de uva, trabalhar a casinha do cuco!

Quantas horas se passaram até que chegasse até a minha vó e depois dela, até a mim! Horas de aflição, horas de espera, horas felizes; horas muito lentas e outras que passaram rápido demais. Quanto tempo, quantas horas; quanta vida, quantas gerações; em tantas paredes, em tantas casas, tanta história. Meus antepassados.

Meus antecedentes que sofreram com as penúrias da chegada em um país selvagem onde tudo estava ainda por fazer. Fui viajando naquela caixinha de madeira ainda capaz de hipnotizar-me com seu tic tac melancólico.

Me levantei do sofá. Peguei um paninho e, com carinho extremo, limpei cada cantinho do relógio. Passei lustra móveis. Coloquei óleo em suas engrenagens cansadas. Limpei o passarinho também, só faltei lhe dar alpiste! Voltei o relógio para o seu lugar de sempre na parede da sala e suspirando fundo decidi, no dia seguinte, levá-lo ao relojoeiro no centro da cidade.

Queria de volta o cuco saindo e cantando a cada hora marcada. Queria de novo o relógio da vovó, inteiro, na parede da minha sala. E quando meus filhos voltassem do final de semana eu teria uma admirável história para contar …

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