Fantasmas

Peter Rossi

 

Todos os dias visitamos nossos fantasmas que, nem sempre estão de bom humor. Às vezes tão perto, esses fantasmas nos assustam. Noutras, nos embalam e convidam a recontar nossas histórias. E de um tom diferente: do final para o começo.

O engraçado é que a vida começa todos os dias, e os finais anteriores nunca acontecem. Deve ser porque antes de terminar o filme, os fantasmas cuidam de rebobinar a fita e quando pensamos em ler a palavra fim, o início já recomeçou.

Nesse entremeio nos permitimos a sentir e ressentir sintomas novos que de novos nada têm, apenas usam um novo perfume e nos iludem. Pensamos estar de braços com um novo par, mas os passos da valsa são os mesmos. O ritmo pode até mudar, mas a linha melódica é insistentemente a de sempre. Só não percebemos que estamos sempre dançando em frente ao mesmo espelho. Os nossos fantasmas são músicos. Tocam instrumentos e cantam aquela canção que tanta saudade nos desperta. Músicas! Várias, todas numa só. Músicas que, quando meninos, cuidamos de gravar na nossa alma e tiramos a pontinha do cassete para que não caiamos na tentação de gravar outra por cima. No fundo, nossas músicas são sempre as mesmas. Não as esquecemos. Apenas damos uma volta na praça e escolhemos em qual tom ouvir.

Nossos fantasmas também são equilibristas e nos permitem andar sobre a corda bamba e nos deixar cair sem medo de chegar ao chão. O chão. Esse, nós cuidamos de afastar. Nós e nossos fantasmas que lá estão de braços abertos a sustentar nossa queda. Fantasmas mágicos. Tiram da cartola, a cada dia, o sol de uma cor diferente. Dias de amarelo ardente que reflete em nossos dentes. Dias de sol encismado, enciumado, cinza. Sol escondido atrás da montanha, fazendo manha para amanhecer. Noutros dias, sol exibido, ofuscante, par constante numa pista de dança louca e brilhante. E vamos nós, dançando e tomando banho de sol. Novo início, perto do fim, que não chegou!

Nossos fantasmas sempre nos fazem esquecer daquilo que queremos, apenas a nos permitir lembrar e lembrar. Seja em forma de lágrima, fazendo olhos de mar. Seja em águas mais paradas, iluminadas pela luz do luar. Nossos fantasmas têm múltiplos bolsos, onde escondem nossos sonhos, nossas saudades e, de repente, sacam da carteira um beijo de amor e nos levam a outros sabores, outras cores. São beijos fantasmas, que todos temos guardados nos bolsos de nossos sonhos. São musas tão amadas, mas tão distantes. São velas de luz, velas de barco, velas no azul do mar. Nossos fantasmas são timoneiros, nos levam a navegar por mares nunca antes sonhados, e como marinheiros nos deixam em praias desertas, com as mulheres certas e uma lua a acobertar!

Nossos fantasmas guardam todos nossos humores, odores, amores. Os vividos, os sonhados, os sofridos, os sustentados. Os óbvios, os oblíquos. Amores líquidos.

Nossos fantasmas dirigem o velho e barulhento caminhão pela poeira da estrada. Nós na boleia, sacolejando e delirando com a velocidade extrema. Nós, deitados, em outra viagem, contando e ouvindo estrelas, esparramados na carroceria. Pernas abertas, braços abertos, bocas abertas, assustados e embriagados com tantas estrelas.

Nossos fantasmas nos trazem de volta ao início, quando o início nem sabia tinha começado. Nos mostram a mesma cena, às centenas, porém com ângulos diferentes da câmera. E aí fica sofrido entender que, no fundo, as cenas decorrem uma sempre atrás da outra e voltar a fita é apenas mudar o ângulo daquela mesma câmera. Ah, esses fantasmas sabem tantas coisas …

Ficam escondidos atrás da porta, apenas esperando que a fechemos atrás de nosso abraço. Eles contam segredos, sussurram lembranças e, como crianças, saem sorrindo a correr.

Nossos fantasmas às vezes se embriagam e, trôpegos, esfregam a verdade na nossa cara. Nos deixam com o rosto deitado na areia, e acordamos com uma ressaca brava, na beira da praia, com uma garrafa de dúvidas vazias nas mãos.

Nossos fantasmas nos permitem viver de amor. Sofrer, querer, esquecer e até morrer de amor. Mas fantasmas não morrem. Amor, então, esse só nos autoriza viver! O amor, aquele que não se define, mas que nos inunda, provoca ondas em turbilhão, nas quais surfamos de braços abertos, com o sol no rosto e o mundo à nossa frente. Amor que faz nossos olhos sorrir. Amor que transborda, afoga e nos traz à tona, em cima da prancha, na areia. Amor que tem gosto de chuva, de maçã.

Os fantasmas nos envolvem em nossos medos, agasalham nossas dúvidas, muitas. Abraçam todos os amores que nunca tivemos e aqueles que quisemos ter.

Amigos fantasmas que nos embarcam no trem e a cada túnel projetam uma nova curva, nos conduzem às vezes em uma montanha russa, mas nos trazem, com o pé no fundo do freio, ao final da pista. Mas aí, quando menos esperamos, rebobinam a fita e mesmo sem deixar que gravemos nada por cima, nos levam de novo ao começo. E, pelo retrovisor, percebemos que o início recomeçou.

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