Peter Rossi
Quando aquele velho me disse que amava coleções, era ainda moço. Eu, um menino atento.
Ele me contava que a vida era feita de coleções; se guardam os dias, todos arrumadinhos, uns atrás dos outros, sob a forma de calendário. E de calendário em calendário a gente guarda uma vida inteira.
Me disse que guardava beijos, alguns no bolso do paletó, outros nos guardanapos, outros no fundo dos olhos, e uns poucos no fundo do coração. Ficava imaginando como se guarda um beijo. E o beijo molhado? Será que se desmanchava? Hoje sei que beijo se guarda sim …
Quando o velho mencionou que poderia guardar as lágrimas eu fiquei assustado, imaginando quantos vidrinhos com tampa de borracha ele deveria ter. E os rótulos: lágrimas de saudade, de tristeza, de alegria, lágrimas sem vontade, lágrimas de crocodilo. Enfim, guardava as lágrimas para usar quando precisasse, era o que me dizia. Ah, quantas coleções!
Com um sorriso maroto no canto da boca, me dizia o velho que colecionava namoradas. Só não entendia, naquele tempo, que nessa coleção uma substituía a outra. E as páginas viradas do álbum quase sempre, ao serem arrancadas, não mais se conseguia colar. Não tinha grude ou cola que desse jeito naquilo.
Pensava nos meus selos (quantas viagens), nos meus calendários de mão (outras tantas viagens), nas minhas bolinhas de gude, nos carrinhos de plástico, nos chaveiros.
Tanto tempo depois, dei de pensar no que me dizia o velho: a vida é feita de coleções.
E, na simplicidade de suas palavras percebo hoje, com muitos anos colecionados, que sempre disse a verdade.
A gente coleciona sorrisos, só esquece onde os guardou. Coleciona amigos, mas os deixa no canto e quando os procura, alguns ainda teimam em lá estar. Coleciona saudades e essas vão se acumulando até chegar num ponto em que, como uma represa, estouram nosso peito.
Juntamos pedaços de nós mesmos que, infelizmente, não conseguimos mais colar da forma como deveria ser. Somos um quebra-cabeça e todas as peças nem sempre estão à nossa mão.
Colecionamos filhos, mas esse tipo de figurinha, chega um tempo, que some do mercado e nós ficamos sem poder completar o álbum. E álbum incompleto não tem graça nenhuma.
E as palavras? Sim, nós colecionamos palavras: as malditas, nunca ditas, abafadas, agarradas em nossa garganta. Palavras mágicas, grandes, pequenas. Palavras lisas, palavras que arranham, palavras que nunca são esquecidas. Os melhores colecionadores de palavras são os poetas. Esparramam aquelas letras num papel branco e fazem dali brotar sentimentos.
Me lembro quando o velho me dizia que também colecionamos gestos. Alguns espevitados, como se fosse uma caligrafia ruim. Outros poucos (que muitos deveriam ser) com letra de professora.
Colecionamos fotografias, algumas quietas, outras que insistem em conversar conosco, lembrando de uma situação ou outra, querendo pular do papel e num abraço fraterno nos levar para o seu tempo.
Os anos passam e cada vez mais precisamos empilhar nossas caixas cheias de coleções. Umas enferrujadas, que não se abrem mais, outras caixas absolutamente soltas, sem tampa, onde as coleções se esparramam, nos dando um trabalho danado prá organizar tudo outra vez.
Temos que cuidar bem de nossa coleção de luz, pois apesar de abastece-la diariamente, o consumo é exagerado. Gastamos muito com o brilho do olhar, com o descompasso do coração …
Triste saber que as páginas do álbum têm fim. E ficamos colando uma figurinha atrás da outra, umas brilhantes, outras com uma pontinha rasgada, num ambíguo sentimento de “quero mais” e “não quero que acabe”.
Aí a gente passa a colecionar medos. Medo do fim, medo de esquecer o começo, medo de medir todo esse tempo e não lograr sentido. A gente consegue colecionar até medo de ter medo.
Colecionamos, na ponta dos dedos, nossos sentidos mais profundos. Colecionamos nós mesmos, em múltiplas fases. Juntamos cacos das estrelas cadentes, cada uma delas com um de nossos desejos.
Hoje colecionamos reflexos, alguns verdadeiros, outros nem tanto assim. Imagens distorcidas, retocadas, robotizadas, pouco francas e pouco à vontade.
Ansioso para rever o velho volto à minha cidade pequena, que hoje pequena não é – coleciona pessoas correndo e barulhos intensos. O velho não está. Dizem que já se foi – agora insiste em colecionar estrelas.
No caminho de volta repenso todas as coleções, as que comecei e depois desisti, as que terminei; as que não consegui terminar. Percebo que juntar, colecionar, é muito saboroso. Coleção de sabores distintos, retintos, uns insossos, outros com muito sal.
Percebo então que só me resta abrir minha caixinha de lembranças e saborear cada uma das figurinhas, colecionando saudades, mais uma vez!
Peter! Como sempre, gostei muito. Continue! Allan
Muito obrigado pelo carinho