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O fusquinha quase imortal

Peter Rossi

Essa vou contar em primeira mão. Numa roda de amigos ouvi atentamente a resenha e não poderia deixar de partilhar.

Osvaldo sempre foi um apaixonado por carros. Ainda menino colecionava reportagens sobre automóveis até que foi editada a primeira revista sobre o tema, chamada “Quatro Rodas”, que acabou se transformando em verdadeira grife sobre o assunto. Salvo engano, até hoje é editada.

O então menino pedia ao pai que o levasse às concessionárias e impressionava tanto os vendedores de carros com seu conhecimento que, invariavelmente, saía com algumas fotos e posters que cuidava de colar na parede do quarto. Fico em dúvida se todos entenderão o significado da palavra poster. Os termos da tecnologia se inserem tanto no nosso idioma e, por vezes, transmutam significados. A expressão é antiga, ainda que pretensiosamente moderna. Significava, ou uma fotografia em tamanho maior, geralmente muito grande. Eram peças publicitárias de divulgação de marcas, espetáculos, filmes, dentre outros.

Osvaldo tinha predileção pelos posters da Chevrolet e da Volkswagen. Naquela época, apenas duas ou três outras marcas compunham o portifólio da indústria automobilística nacional. Carros importados? Só para os magnatas – outra expressão bem antiga.

Osvaldo foi crescendo e aos dezesseis passou num concurso para “office boy” do Banco do Brasil. O “office boy”, em tradução literal, era o garoto do escritório, aquele que se prestava a fazer toda e qualquer atividade, sobretudo o serviço de organização de documentos e também o serviço de rua – buscar e entregar documentos. 

Desde que começou a trabalhar nosso amigo juntou o que podia. Tinha um sonho a atingir: ter um fusquinha! Anos mais tarde e galgando outras posições no banco, viveu a possibilidade de adquirir uma quota de um consórcio de um fusca. Em poucos meses foi agraciado com um automóvel fusca, ano 1962, zero quilômetro, brilhando de novo, na cor marrom claro.

Osvaldo desfilava, nos finais de semana com o carrinho. O volante era branco e os bancos revestidos de bege. Com o cotovelo apoiado na janela, Osvaldo subia e descia a avenida principal do bairro, andando bem devagar para que as meninas pudessem admirar aquela máquina. Sua intenção era convidar a mais bonita para dar uma volta no carro.

O fusca do Osvaldo, batizado de “Toddy”, uma marca de achocolatado que até hoje sobrevive, em razão da sua cor fazia muito sucesso e, certamente, muitas moças andaram no carro.

Os anos se passaram e Osvaldo foi progredindo no emprego, até se tornar um gerente. Àquela altura, um fusquinha não era mais o objetivo de nosso amigo, certamente iria preferir um Opala ou mesmo um Galaxie, os carros mais sofisticados da época. Fato é que não demorou a ter um Galaxie na garagem. Na certa tinha vendido o fusquinha. Mas, não! O carrinho marrom claro ainda estava com ele e a todos dizia que assim permaneceria até o fim.

Os anos se passaram, o século mudou e Osvaldo, agora um avó zeloso e já aposentado, continuava cuidando do fusquinha até que o carrinho parou. Ele contratou um reboque e levou para a oficina especializada. O veredicto foi fatal: – Seu Osvaldo, o carrinho não aguenta mais, não existem peças a repor e ele nunca mais voltará a rodar.

Osvaldo voltou arrasado para seu sítio, nas cercanias de Belo Horizonte, pensando no que faria. Na manhã seguinte, contratou uma escavadeira, chamou toda a família, inclusive os netos pequenos, e todos foram assistir ao trator furar um buraco enorme na campina. Passado algum tempo, o mesmo equipamento cuidou de colocar o fusquinha no buraco e jogar a terra por cima. Pronto, tinha acabado de ocorrer o enterro do fusca que, segunda afirmam os descendentes de Osvaldo, ainda repousa no mesmo lugar.

Durante a cerimônia, esses mesmos descendentes confirmam que o velho Osvaldo alternava momentos de sorriso e de profunda dor. Após ver o buraco totalmente tampado, não conseguiu esconder o sentimento e disse em voz alta:

– Meu carrinho querido, cumpri a minha promessa. Você viveu comigo até o fim!

Retirou um lenço do bolso, por coincidência na cor do fusquinha, e com um gesto comedido, disfarçado até, enxugou algumas lágrimas, de dor e alegria.

Dizem os que conhecem o lugar, que no sítio um lindo jardim de antúrios cobre aquele pedaço de chão. Flores lindas de uma cor muito especial, quase um bege. Fossem mais escuros, lembrariam a cor do fusquinha de Osvaldo.

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