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O cachorro do garçom

Peter Rossi

Em primeiro lugar, destaco que acho a palavra garção horrorosa. Graças ao bom Deus, a corruptela do termo francês foi absorvida pela nossa língua, e hoje falamos apenas garçom. Muito mais sonoro. Não fosse isso, tenho comigo que a expressão garção era a “masculinização” da palavra garça, aquele animal, uma ave toda empertigada, parecendo sempre bem vestida, como, aliás, são os garçons. Ruim, muito ruim. Fiquemos com o garçom e peçamos o nosso chope.

Dia desses fui para a cidade de Tiradentes, num evento literário. Apesar de delicioso, foi maçante ficar quatorze horas por dia na feira. Uma das diversões, além dos livros, era conhecer novos restaurantes a cada dia.

Já era domingo, o famoso “fim de feira”. Procurei algum lugar para comer e ao lado da ponte velha me deparei com uma boa música, tocada ao violão. O ambiente, muito aprazível, com mesas sob ombrelones num gramado aconchegante. Não pensei duas vezes e corri para alcançar a última mesa disponível. Ufa, deu certo!

Uma cerveja gelada amenizava um calor infernal, algo pouco comum na cidade de Tiradentes. O violeiro desfilava canções da minha época, felizmente todas brasileiras. Eu viajava naquelas músicas, me deliciando com lembranças da minha vida. Tudo bom: o lugar, a música, a comida, a cerveja. Não queria sair dali.

Quando me dei conta, um cachorro de cor caramelo tinha se deitado sob a minha mesa, encostando seu dorso no meu pé esquerdo. Fiquei imóvel, não queria tirá-lo do conforto, mas logo um atendente chamou a atenção do animal:

– Gravata, sai daí, eu já te falei que não pode ficar incomodando os clientes!

Corri na defesa do tal Gravata, mas era tarde, apesar da preguiça, o cachorro tratou de sair dali.

Sempre fui um apaixonado pelos animais, em especial pelos cães. Amor incondicional o deles e sempre que posso, desafiando conselhos de amigos corro a abraçá-los. Isso já me custou algumas mordidas, porém recebi mais afagos que repulsas.

A sensação do pelo dos bichos e a alegria que transmitem com a boca aberta e a língua de fora são indescritíveis. Amo cachorros, embora não tenha, nesse momento, nenhum sob minha tutela. Assim, me julgo tutor de todos aqueles que caminham pelas ruas.

Tiradentes é uma cidade notória pela quantidade de cães nas ruas. Em toda loja, todo restaurante, todo bar, lá está um animal à espera dos clientes. Os turistas já se acostumaram e fato é que os próprios nativos tratam muito bem os cães. Eles fazem parte da paisagem e acabam por adornar uma cidade já tão bela.

Fico a imaginar o mundo sem os cães, mas não consigo. Lembro-me dos que já tive e daqueles que imagino ainda terei. São verdadeiros amigos, filhos, irmãos e até pais, às vezes.

Ousam experimentar o silêncio e a respeitar a dor alheia e com extrema sensibilidade, conseguem entender a nossa solidão e se prontificam a dar seu apoio. E o mais sensacional, não precisam de gestos forçados ou palavras arrumadas na estante da conveniência. Num simples olhar, conseguem transmitir um sentimento absolutamente verdadeiro. Menos é mais. Os cães, com expressões de menos, falam muito mais!

Alguns, emoldurados pela soberba, acreditam que o olhar do cão é de pedinte. Nada disso! É dádiva pura! O que eles querem, aos nos encarar e dizer que está ali, conosco, pro que der e vier.

São solidários! A prova inconteste passa à frente de nossos olhos diariamente, ao percebermos (ou não) um morador de rua. Ele sempre tem um cachorro, ou mais de um, ao seu lado.

Hoje mesmo vi uma carroça quando ia para o trabalho, bem ao lado do meu carro, em pleno trânsito urbano. Sobre ela um senhor com vestes simples e ao lado dele dois cães.

Um dia, ainda pequeno, ouvi a frase “quanto mais conheço os homens, mais estimo meus animais”. Atribuída ao poeta e escritor português Alexandre Herculano, sempre a li como uma crítica contundente. Hoje, mais velho, começo a pensar diferente. Não sei qual idade tinha Herculano quando a cunhou, mas, para mim, o sentido se modificou. Não percebo somente a crítica à raça humana (da qual, aliás, é merecedora), vislumbro o elogio aos nossos amigos de rabo. 

Melhor que seja assim. O horizonte se faz moldura e consegue transformar o opaco em brilho. É só uma questão de ponto de vista. Ver o mundo com olhos otimistas o faz melhor, disso não tenho a menor dúvida. Olhos humildes nada têm de rasos, ao revés, se aprofundam na experiência, alardeando uma vida mais feliz!

Já observaram como os cães utilizam o olhar pra se comunicar? E não só porque não falam, penso eu, mas porque os olhos não têm cortinas nem impostações, são nus e sendo nus se mostram inteiros. O que um olhar diz não se dispensa ou distorce. É o que é!

Alguns especialistas dizem que essa “comunicação” dos cães com os humanos é instinto e que eles, os animais, de fato não pensam. Tenho lá as minhas dúvidas. Penso que os cães têm sentimentos sim. Mas, ainda que esteja errado em minhas conclusões, sou forçado a concordar, então, que está faltando muito instinto nesse mundo.

Chega de divagações. Volto a lembrança para a mesa do restaurante e a boa música que contornava meus ouvidos. Bastaram alguns minutos e lá estava Gravata, mais uma vez, aos meus pés.

Tive o impulso de pegá-lo no colo, mas logo a correria dos empregados da casa me fez ver que aquela não era uma boa ideia, pelo menos pra eles. Mais uma vez, me contive. Mas trocamos alguns olhares – o Gravata e eu – e tenho a certeza que ele entendeu que o queria em meu colo.

Chegando à minha mesa para justificar, a mocinha de pele morena e cabelo encaracolado, com dentes belíssimos, foi logo dizendo:

– Desculpe-nos meu amigo, o Gravata é impossível, principalmente longe do Moacir.

A história não fazia qualquer sentido e cuidei logo de procurar entender o que aquela linda menina me dizia.

– Como assim? Moacir? Não estou entendendo nada, me desculpe. Disse eu.

– É que o Gravata é o cão do Moacir, nosso garçom. Ele, Moacir, caiu da bicicleta e quebrou o pé. Pegou licença e vai ficar uns vinte dias longe do trabalho.

– Entendi, mas o que o Gravata tem com isso?

– É que sempre que o Moacir não vem trabalhar, o Gravata cisma de vir até aqui e não arreda pé, até a casa fechar. Ele sempre vinha com o Moacir, e agora deu pra vir mesmo sem ele.

Escutei, pasmo, tudo aquilo. Por alguns minutos me dispersei, e esqueci a mocinha em pé, ao meu lado, como um “dois de paus”. Minha mente não conseguia processar aquela informação tão rapidamente.

– Qual o seu nome?

– Larissa.

– Larissa, me chamo Peter. Você está me dizendo que o Gravata está vindo para o trabalho do Moacir, enquanto ele se recupera do acidente, em casa?

– Isso mesmo! E como ele pontual, o senhor não acredita! Logo as dez, a casa está abrindo a lá vem aquele rabo cor de caramelo. Dá uns dois latidos e não se faz de rogado. Vai logo entrando e esbarra em todas as pernas que vê pela frente, como a cumprimentar cada um. Recebe mil e um afagos. Ele é feliz aqui. Muito feliz! E, confesso ao senhor, todos nós o adoramos!

– O nome dele era Tonho, mas “rebatizamos” Gravata, afinal ele é o cachorro do garçom que substitui o dono ausente.

– Confesso a você, Larissa, que achei a história sensacional. Mas é só história, não é isso? E, a propósito, a mudança de nome também foi divertida.

– Sr. Peter, não é história não, é a mais pura verdade. E o Gravata aprendeu seu novo nome e hoje atende por ele. Não contamos essa história pra todo mundo, mas é verdadeira.

Minha vontade de pegar Gravata nos braços foi maior e ainda que a enfrentar alguns olhares, peguei o cachorro e o coloquei sentado no meu colo enquanto, com as duas mãos, acariciava o seu rosto. Ele me olhava agradecido.

Pedi meu prato e fiquei ali a interagir com o cachorro. Terminada a refeição, sobraram alguns ossos e cuidei de entregá-los ao Gravata, mas ele não estava mais ali. Chamei um dos garçons e perguntei pelo animal. 

– Ihh, ele corre todas as mesas e interage com todos os clientes, com certeza deve estar no outro ambiente. O senhor queria dar esses ossos pra ele? Não se preocupe, vou embalar e quando ele estiver por aqui eu entregarei.

Agradeci e paguei a minha conta. Levantei-me da mesa, cumprimentei o violeiro, parabenizando pelo repertório e virei as costas. Mas alguma coisa me impulsionou e busquei saber onde estava Larissa, que logo veio a mim.

– Pois não!

– A história que você me contou, de que o Gravata, o cachorro do garçom Moacir, vem cumprir a sua jornada mesmo quando ele não pode vir ao trabalho … isso é verdade?

– É sim, seu Peter. Aliás, olha ele aqui de novo!

Entreguei meu celular e pedi a ela que tirasse uma foto minha junto com o animal.

– É mesmo verdade, menina?

– Claro que sim! Volte aqui amanhã e o senhor verá.

– Moça, o mundo todo tem que saber disso. Posso contar essa história?

– Claro que pode!

Aí está!

*
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  • Genial o relato! Não sou aficionado em animais mas essa história me tocou! Visito Tiradentes periodicamente e na próxima oportunidade irei procurar pelo Gravata! Parabéns, Peter!

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