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Lembranças

Peter Rossi

Márcia e Márcio, até nisso eram iguais! Quase sessenta anos de vida juntos. Resolveram se dar um presente, iriam até a mesma praia onde passaram a lua de mel.

Ainda estava lá o hotel, mesmo que um tanto alquebrado. Suas janelas eram tristes olhos a lembrar do glamour de outros tempos. Tentaram o mesmo quarto, porém não se lembravam mais em qual ficaram. A administração do hotel, por seu lado, não tinha disponíveis informações de sessenta anos atrás.

O hotel, tinham certeza, era o mesmo. Uma escada de madeira que descia até a praia e subia até os quartos para uma sopa deliciosa no final de tarde.

Conseguiram um quarto de frente pro mar, com ampla porta francesa que, quando aberta em duas metades, abraçava o sol e ofertava um suspiro de calor sobre a cama.

Estavam exaustos, porém muito felizes. Conseguiram cumprir uma promessa mesmo esquecendo do que se prometeram. A ideia cheirava a oportunidade de pensar assim e assim fizeram. A vida outorga oportunidades de sonhar sonhos não imaginados todos os dias, cabe a nós acreditar que um dia pensamos em sonhar assim. É dessa forma que a felicidade se constrói: abraçar o sonho e torná-lo realização plena, ainda que em doses homeopáticas.

Vida plena se resume a momentos inesquecíveis construídos por sentimentos muitas vezes não pretendidos. Nem sempre a expectativa se conforma. A performance do acontecido é que preenche nossas retinas, acalenta nosso coração e nos permite pensar que sempre pretendemos pensar assim, ainda que nunca tenhamos vivido o que aconteceu e nem sequer construído uma ansiedade para tal.

Márcio e Márcia sempre viveram assim, um dia de cada vez. Não acordavam com maiores expectativas um do outro e com isso construíam um filme de surpresas e agradecimentos. O suco levado na cama não era esperado, mas sorvido com gratidão. No dia seguinte, a memória tratava de esquecer o sabor ocorrido e o suco do próximo dia era sempre diferente, e melhor!

O casal queria desfrutar e repetir o que mal se lembravam. Sabiam que estiveram ali, mas a bem da verdade, nenhum detalhe vinha à mente. Tinham algumas fotos, raras e distorcidas, que não lhes permitia uma lembrança efetiva. Mas sabiam que deveriam voltar. E voltaram, felizes e plenos para novas experiências.

Logo no segundo dia, a passos lentos, caminharam até a praia. Um degrau de cada vez. Márcio sempre a frente, não por arrogância, mas por um demasiado instinto de proteção. Se faltassem pernas a Márcia lá estava para protegê-la. Além disso, cabia a ele desbravar os novos rumos, munido de sua inafastável bengala, a matar todo e qualquer dragão que cruzasse o caminho dos dois.

Desceram as escadas até a praia, um funcionário do hotel ladeando-os com uma sacola e um guarda-sol. Estavam como bonecos de neve, inusitados em relação à estação e ao cenário, besuntados de protetor solar. Essa era uma árdua tarefa para ambos: espalhar na pele enrugada alheia o creme que a Lúcia, a única filha, insistia em recomendar. Com o carinho que as mãos trêmulas permitem, percorriam o corpo um do outro onde músculos ou curvas já não existiam. Não havia libido a descortinar, mas o olhar de Márcio sempre enxergava em Márcia a mais bela de todas. A mulher, por seu lado, deixava o rubor iluminar a desfaçatez dos desejos que não mais alcançava, mas sempre a imaginar o seu homem, seu parceiro, seu porto seguro, seu amigo e, com os olhos fechados, desenhava naquelas rugas todas as voltas que seu amor conheceu naquele corpo, um dia viril.

O funcionário tratou de fincar na areia o mastro do guarda-sol a proteger suas espreguiçadeiras, separadas por uma mesinha de plástico onde repousava uma jarra de água de coco. Tomem muito líquido, por favor. Era a voz de Lúcia a recomendar.

Caminharam de mãos dadas, bem devagar, com largos chapéus a sombrear os próximos passos, facilitando o caminho e protegendosuas cabeças já com raros pelos. Seguiam pelo fim da arrebentação, quando as águas se tornam mínimas e insistem em voltar de onde saíram. Límpida a água que lhes permitia ver os próprios pés embebidos em areia e alegria. Eram passos lentos, porém generosos uns com os outros. Ritmados, pareciam desbravar mundos afora, embora a distância percorrida lhes permitia ouvir, ainda que sem os aparelhos auditivos, o chamado do garçom do hotel.

Tinham comentado na recepção do hotel a história da sopa. Queriam agradá-los, muito embora há de se reconhecer que praia e sopa não se completam num país tropical.

Era hora de voltar. O sol causticante se vestia de laranja e acalmava o brilho, pomposo a desfilar em dia de festa. Ele, Márcio, subia com seu esqueleto frágil, dessa vez depois da mulher, amparando-a com sua bengala. Paravam e respiravam naquela ladeira íngreme, degrau por degrau. Ele, fingindo que a equilibrava, ela, fingindo que se sentia segura.

Chegaram ao topo, um deck espreguiçando sobre a areia. Uma mesa posta os convidava a tomar uma canja de galinha. Márcio puxou a cadeira e Márcia sentou-se. Ele, logo em seguida. O garçom cuidou de servir dois pratos fundos e, ao lado, em pratos menores, derramou algumas torradas bronzeadas de manteiga.

Márcio e Márcia se entreolharam como a dizer um pro outro. Vamos? Mais uma vez, vamos?

E assim fizeram todos os dias, até o final da semana. A rotina, sempre a mesma. O encantamento dos outros hóspedes era estimulante. Viam sempre aquele casal de velhinhos a tomar a canja, bem devagar, mirando o pôr-do-sol. Cada um com uma colher numa das mãos, as outras entrelaçadas entre si.

Mulheres de meia-idade passavam pela varanda e sussurravam no ouvido dos maridos: queria que ficássemos assim, na velhice. Olha que lindo exemplo. Márcia e Márcio, alheios a tudo à sua volta, só cuidavam de viver aquele momento. Alguns beijos de “sonho de valsa” a estalar na fronte de um e de outro. Sorrisos tímidos, de poucos dentes, mas embevecidos. Na verdade,resolveram envelhecer juntos, esquecendo a passagem do tempo e, também, que o tempo passava!

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  • Que encanto! Você tem o poder da escrita!! Consegui sentir o sabor da a canja de galinha .
    Eu pretendo reviver tudo isto com o meu maridão daqui 10 anos, Bodas de Ouro.kkkkkk

  • Peter: (1) Simples, suave e cativante, o delicado epílogo de uma vida que, vislumbrada e avaliada tardiamente, cumpriu com visível louvor e rara delicadeza, o que desejam pessoas não prisioneiras de ilusórias pompas mundanas. Cumplicidade na vida e paz de espírito é o que basta. (2) Há algum tempo, ao flanar nos jardim da casa onde cresci, vislumbrei em arbusto florido, um ninho de beija flor. Trocamos olhares em silêncio e conversamos com os olhos. Ela chocando assustada e eu olhando admirado. No mais, o respeitoso silêncio. Ficamos íntimos para sempre. Cúmplices, passamos a nos ver regularmente. Até que um dia, lá já não estava. Ou melhor, estavam. Entendi, sorri e admirei as flores, então mais belas do que nunca. Entendi mais uma vez e sorri. Agradeci a ternura de uma amizade espontânea e silenciosa. Jamais esqueci o que sempre recordo com profunda e refrescante ternura. (3) Relembrei o episódio do beija flor ao ler e, mais do que isto, ao absorver e reviver a sua intuitiva percepção de outro momento mágico. O de um casal que sobreviveu à maratona da vida sem abrir mão de terna, e provavelmente eterna, elegância. (4) Parabéns! A sua afiada percepção sobre a vida mundana está cada vez mais bem esculpida em textos com previsão cirúrgica. Laparoscópica. Ou, muito breve, robótica. Forte e saudoso abraço.

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