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Os palitos e os pequenos abacates

Peter Rossi

A parte de trás da minha casa de infância tinha uma área cimentada e, por cima dela alguns postes de madeira sobre os quais se deitavam arames a servir de varal. Ali pousavam, além das roupas lavadas, também os passarinhos a colorir e encantar.

A porta da cozinha delimitava o centro da área. Uma porta pintada de azul, dividida pela metade na horizontal, de modo que minha mãe poderia falar conosco sem precisar sair de lá. Bastava esticar o pescoço e já nos alcançava.

Do lado direito, um grande muro forrado de hera. Minha mãe tinha verdadeiro horror quando chutávamos a bola de couro de encontro ao muro.

– Parem com isso meninos, vão matar as pobres coitadas das heras! Reclamava ela.

Nós éramos absolutamente surdos e fato é que com a continuidade dos arremessos as heras foram minguando, para tristeza de nossa mãe.

Ladeando toda a área pela frente, um barranco de argila, bem compacto. Bem no meio, uma escada infindável que chegava até a garagem.

Havia ali pés de manga, de goiaba e de abacate. Desses me lembro muito bem. As mangas eram as nossas preferidas, não só para brincar, como também para degustar. Manga espada, com uma ponta acentuada e de coloração verde amarelada – quando madura. Eram grandes as frutas. Bastava uma mordida na ponta e com os dentes tirávamos os nacos de casca. Em poucos segundos tínhamos a fruta amarela a lambuzar nossas mãos e nossa boca. Chegando só no caroço, do alto da árvore mesmo, lançávamos na terra.

A goiabeira era também festejada. A sensação de escovar os dentes com as folhas de goiabeira era das melhores, muito refrescante. E achar uma goiaba grande sem nenhum bicho? Era quase como ganhar na loteria, algo muito festejado. Além disso, nossa mãe fazia uma geleia deliciosa com as frutas.

Tinha, ainda, o abacateiro. Gostávamos do abacate, mas não era nossa fruta preferida. Partíamos ao meio, retirávamos o caroço com facilidade e, em seu lugar, despejávamos açúcar cristal e íamos comendo às colheradas, do centro para as beiradas. Ao final, uma casca vazia nas mãos, maleável, porém intacta.

As frutas do abacateiro eram interessantes, nasciam bem pequenas, porém com o mesmo aspecto da fruta quando madura. Sua cor não se alterava, apenas o tamanho e a rigidez. Quando pequena a polpa era mais dura. Não dava prá comer, contudo era um excelente brinquedo.

Isso mesmo! Melhor que comer abacate, era brincar com os pequenos abacates! Para isso, bastava algumas dezenas das frutas e uma caixinha de palitos. Nossa mãe comprava os palitos de dente. Eles vinham numa caixinha marrom com a foto de uma moça loura estampada. Me lembro bem do nome: Gina! Palitos Gina! A propaganda, na televisão, ainda dizia que a caixinha, por ter um furo em sua tampa superior, servia também de paliteiro. Me recordo como se fosse hoje. Existem imagens que nunca nos abandonam. A da caixa de palitos é uma dessas.

Existia um brinquedo que se chamava “Pinos Mágicos”. Eram diversos pinos plásticos com furos e saliências, de modo que conseguíamos “grudar” uns nos outros, formando vários objetos. Nós, entretanto, preferíamos os abacatinhos. A gente pegava a fruta, espetava nela um palito e na outra ponta, uma outra frutinha. E assim, íamos emendando frutas e palitos, e construindo as formas mais diversas: foguetes, discos voadores, caminhões, enfim, tudo que a nossa imaginação permitisse.

Como era mais fácil ser feliz naquela época. Frutas arrancadas do pé e uma caixa de palitos. Com uma colher de jardim, escavávamos na argila algumas pequenas grutas e ali estavam as nossas garagens. Colocávamos todos os objetos construídos e nos sentávamos de frente, para admirar.

Vez o outra, nossa mãe vinha pra admirar também e ao elogiar nossos trabalhos, enchia nossos pequenos corações de alegria.

Para decorar as garagens a gente se valia de um brinquedo que chamávamos “toquinhos”. Eram pedaços pequenos de madeira, nas cores verde, azul, amarelo e preto, imitando paredes de tijolos. Os telhados eram sempre vermelhos e triangulares. Acho que nome era “Pequeno Construtor”. Adorávamos aquilo e usávamos as peças para ornamentar os buracos na terra. Na nossa visão, passavam a ter o aspecto de construções mesmo. A imaginação dos meninos não tem limites, mas é pouco exigente em seus padrões. Qualquer pingo era uma poça, qualquer linha uma reta, qualquer toquinho uma parede. 

À noite, já deitados nas nossas camas, ficávamos a discutir o que construiríamos no dia seguinte. Era sempre um desafio. Mas certo é, que de uma forma ou de outra, a gente sempre conseguia. Não era toda vez que nossa mãe adivinhava o que tínhamos feito. Tinha situações em que precisávamos explicar, mas tudo bem, o que valia mesmo era nossa alegria incontida a imaginar navios, espadas e chapéus.

Sinto muita saudade dessa época. Fico imaginando se o terreiro ainda existe e se ainda estão ali os pés de manga, de goiaba e de abacate. Já passei algumas vezes na frente da casa mas um pudor excessivo me impediu de tocar a campainha e dizer que passei nela a minha infância e que queria apenas saber como estava. Nunca fiz isso, embora morra de vontade.

Não sei quem mora no imóvel e nunca procurei saber. Posso até conhecer, o que facilitaria a minha empreitada, mas nenhuma iniciativa tomei.

Penso, lá no fundo que meu coração tem medo da certeza de nada daquilo mais existir e que, doravante, estaria impedido de sonhar, de lembrar daqueles momentos tão especiais.

E o coração é esperto. Ele prefere se manter incólume às mudanças que podem alterar o seu ritmo. Tranquilo e sereno, ele prefere imaginar que tudo continua como sempre esteve, com o chão coberto por palitos e pequenos abacates.

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  • Descrição tão vívida de uma infância feliz... Oh dias de minha infância, como meu avô José Capanema um dia escreveu em seu livro.

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