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Quantas cores

Peter Rossi

Estive, na semana passada, em um shopping de decoração, procurando algumas almofadas e tecidos para colocar no sofá da minha casa. Meus gatos entenderam de afiar as unhas naquele universo e perdeu o mais fraco – tecido do estofado completamente esfarrapado. Num primeiro momento assustei, depois entendi que as coisas são sempre assim, paga-se um preço por tudo, mesmo aquilo que preço não tem. Se a intenção era desfrutar da companhia dos bichanos, o sofá sucumbiria. Deveria eu, munido de indefectível resiliência, vibrar com meus amigos por perto, e cuidar de restaurar o móvel.

Procurando daqui e dali, entre centenas de peças, vi no chão algumas almofadas quadradas, com a tonalidade bege.

Procurei uma vendedora que, após se desvencilhar do celular, acabou por me dar atenção.

– Pois não, meu senhor, o que procura?

Tive que me conter pois detesto que me chamem de senhor. É como se pendurassem no meu pescoço um crachá enorme dizendo “pessoa de idade”. Costumo responder com o infame: “Senhor está no céu”. Envelhecer, para mim, é como um passeio na Disney. Recolho a idade no bolso da calça e me permito imaginar que sou como sempre fui. Aliás, aqui um parêntesis: na minha opinião, o sucesso da Disney revela-se exatamente nessa premissa. A idade é algo que a métrica não alcança. É puro estado de espírito a refletir na retina o espocar dos fogos de artifício. Belchior, o poeta maior da música popular já dizia exatamente isso.

Não o fiz, estava bem-humorado naquela tarde.

– Minha senhora – devolvi a espetada – procuro umas almofadas e, a princípio, aquelas ali chamaram minha atenção. Aquelas quadradas de um tom meio bege.

– Aquelas? Disse a moça sem se importar com o “senhora”.

– Isso mesmo, falo daquelas ali.

– Entendi, as com tecido em cor de rato.

– Hã? Cor de rato? Como assim?

– Sim, disse a moça abaixando para pegar uma delas.

Peguei a almofada nas mãos e, confesso, não resisti. Via ali um tecido bege, e olha que na minha opinião, bege é uma cor variável, não pertencente ao núcleo básico.

Quando menino, contava nas mãos as cores que via. Uma caixa de lápis de cor com doze unidades esgotava o meu universo. E, ainda assim, aprendi que o verde era fruto da mistura do azul e do amarelo. Que o rosa, era o vermelho esbranquiçado. O marrom, era fruto da mistura do verde e do vermelho. O roxo, cor que mais me fascina, resultava do azul derramado em vermelho. Mais velho, li num livro uma passagem que remetia à cor fúcsia. Sensacional o nome! Pronunciá-lo é como pintar o mundo de violeta, ou vinho, ou grená … sei lá! 

Hoje as cores se multiplicaram, mesmo o universo sendo o mesmo. Fruta não é mais fruta tão somente, também é tom. Daí nascem as cores: limão, laranja, uva, ameixa, dentre outras. Apesar dos pomares serem mais antigos, novas dissensões apareceram: melancia, kiwi, fruta-do-conde. Isso mesmo, fruta-do-conde hoje é reconhecida como tonalidade. Meu Deus, onde iremos chegar com tanta imaginação?

Mas a ideia é impactar, e a indústria cuidou de adotar os bichos: cor de rato, elefante, morsa. Na minha época só existia a cor de burro fugido, e ninguém sabia qual era!!!

Vamos lá, devemos abrir nossas antenas parabólicas para receber as novidades, mas as pesquisas que fiz simplesmente me aterrorizaram. Aprendi que existe uma cor que se chama “pescoço de marreco”. Li sobre “âmbar-bastardo” e fiquei a imaginar a cor de tijolo abandonado. Não resisti ao riso quando me deparei com a cor “incardido” – mais direta, impossível, embora com grafia sofrível.

Fiquei a imaginar o quanto viajamos nessas imagens, obrigando o nosso cérebro a vincular o fato ao ato, ainda que o sentido literal do nome da cor não remeta ao que se imagina.

A vendedora me entregou a almofada e olhando para o objeto, de imediato devolvi. 

– Almofada cor de rato não é algo que me atrai. Foi o que respondi. Ainda mais que tenho gatos em casa.

– Mas é tão moderna, tão linda e, mais, combina com qualquer outra.

– Minha cara, agradeço e reconheço o seu esforço, mas o rato é pra mim um animal repugnante e não me agrada esclarecer aos meus convidados que tenho vários objetos que a ele remetem na minha sala. Você, por acaso, tem almofadas cor de gato?

– Impossível, os gatos são vários, cada um de uma tonalidade, não dá pra uniformizar numa cor.

– Entendi, mas vamos pra alternativas. Veja aí, dentro desse tom, o que tem a me oferecer.

A moça adentrou a loja e, procurando daqui e dali, chegou com uma almofada interessante. Era de um amarelo bem claro, quase esmaecido. Com terceiras intenções, fui logo perguntando:

– Essa é de qual cor?

– Isabelina!

Meu Deus, mais uma vez! Apropriaram da Isabel para definir uma tonalidade. Mas todas as mulheres de nome Isabel eram iguais? Qual o contexto disso tudo? Era o que pensava. À essa altura me lembrei dos esmaltes de unha: “princesa galante”, “céu enraivecido”, “sonhos esquecidos”, e por aí vai.

Somos divertidos em nós mesmos e, para justificar mínima alteração a despertar novos desejos e instintos, criamos um mundo a parte que acaba por enfeitiçar. Cores como o azul e o verde não mais existem sem sobrenomes. O azul vem sempre acompanhado das expressões anil, calcinha, céu, cansado, agreste. O verde, coitado, esse se vê acompanhado de adjetivos alguns impublicáveis. Mas não nos esqueçamos dos verdes bandeira, grama, limão, esmeralda, e por aí vai.

Os balões multicores de nossa imaginação e conveniência sobrevoam o que minha geração imaginava ser uma simples aquarela, daquelas de papelão na qual introduzíamos o polegar e munidos do pincel desenhávamos o melhor mundo que víamos.

Ainda nas minhas pesquisas, descobri que existem caixas de lápis de cor com duzentas e quarenta cores diferentes. Isso mesmo, duzentas e quarenta! Quando criança imaginava doze apenas, não mais que isso, lembrando que o branco é a mistura de todas elas e o preto a ausência de cor. E agora? Como sobreviver a tantas tintas? Palha, pergaminho, céu fechado, dentre outras.

Sou forçado, dada minha pouca intimidade com tal universo de luzes, a me concentrar no básico, o que meus olhos tendem a entender. Tantos tons e imagens me confundem. Prefiro entender que o alaranjado é o mesmo de sempre. O vermelho, de igual maneira, preenche minha retina com o que sempre imaginei. E, me desculpem os algozes de plantão, a cutucar nossos velhos pensamentos: menos é mais!

Agradeci a vendedora e num giro procurei novas vitrines. Não me imaginei a tentar entender como tantas cores existem hoje em dia. Passeando ainda no mesmo shopping, sentei-me na Praça de Alimentação e após uma sonora gargalhada, imaginei “Da Vinci” a enfrentar essa parafernália moderna. Não seria uma Monalisa, mas uma Plurilisa, algo que, a meu ver, jamais alcançaria a graça original. Enfim, haja diversidade de tons!

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