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Clube de correspondência

Peter Rossi

Sempre admirei minha tia Íria. Uma mulher tão inteligente e culta, com amigos em todas as partes do mundo. Ela me incentivou a colecionar selos e todos os meses eu recebia uma grande quantidade deles, oriundos de diversos países.

Até hoje tenho uma bela coleção de selos e, com certeza, alguns dos exemplares foram doados pela Tia Íria.

Perguntava como tinha tantos amigos, embora soubesse que ela viajava muito para o exterior. Foi aí que ela me ensinou uma coisa muito legal: o clube de correspondência!

Se não estou enganado, era na revista “Seleções”. Tinha uma sessão em que as pessoas divulgavam seus endereços para que outros pudessem lhe mandar cartas e cartões postais. Que loucura o mundo de hoje – divulgar o endereço residencial em revistas, simplesmente inimaginável. Vivemos enclausurados em nossos medos, sempre à espreita de que alguém fará mal a alguém. É inevitável, sempre acontece assim. A que ponto chegamos? Que evolução é essa? Eu não consigo compreender.

Voltando ao clube de correspondência…

Fiquei realmente entusiasmado com a ideia. Me lembro bem das duas primeiras cartas que encaminhei, uma para Petrópolis e outra para Araxá. Algumas semanas depois e estava eu a rasgar o envelope e extrair de lá um cartão postal com a imagem do Museu Imperial. No verso, com uma letra miúda Aldair me respondia, em poucas palavras, como era a sua cidade. Na época minha mãe disse que em razão da escrita era uma pessoa mais velha.

Continuei a mandar cartas e cartões postais. Em alguns meses, já tinha dezenas deles, de diversas partes do país. Numa pequena caixa de sapatos, guardava tudo com muito cuidado, organizando pelas datas, do mais antigo ao último recebido.

Hoje fico a imaginar como a vida, ao passar devagar, nos permitia sorvê-la maior. Sei que já falei inúmeras vezes sobre isso, mas é um tema que me inquieta. Pensar num clube de correspondência hoje é simplesmente impossível.

A ordem é não escrever, apenas digitar. Menos linhas e palavras, pelo amor de Deus, afinal pouco tempo temos para se dedicar a isso! E, ao economizarmos tempo para essas tarefas, o tempo passa e o perdemos, de maneira inexorável. O simples é dispensável, cuidados com o reparar a vida não se justificam. Hoje, viver é correr atrás de tarefas, por nós impostas sem se perguntar se são mesmo absolutamente necessárias.

Com a pandemia, tomamos um susto enorme ao percebermos que poderíamos dispensar reuniões e tudo continuava. Pronto! Mais uma prova de fogo vencida! O contato humano é também dispensável. Basta a tecla do computador e a imagem gráfica nos substitui.Daqui um tempo, sentiremos, pelas ondas cibernéticas, o perfume dos nossos interlocutores.

É de se pensar, embora inegável que a realidade é essa, e se também não somos mais indispensáveis. A tal da inteligência artificial. E aí o contexto é de burrice tacanha: estamos construindo um mundo no qual não mais teremos importância alguma. A tal história do Orwell se desenha rapidamente.

E quando chegará a emoção artificial? Tomaremos doses de alegria? Uma injeção de saudade ou um aplique de amor? Quando receberemos uma cartela com sentimentos variáveis, para usar quando mais conveniente for?

Que vida louca, imaginar que vida não existe  mais, só sobrevivência. Será que o caminhar, a contemplação do sol no fim de tarde ou absorver o cheiro da terra molhada, admirar uma flor mais linda que a outra, a lambida do seu pet, será que tudo isso não vale mesmo a pena?

Me remeto aos tempos dos clubes de correspondência. E, ainda que amargurado e saudoso, tento erguer um muro com relação a essas ideias modernas, mesmo sabendo que são inexoráveis em suas ações. Estou híbrido: me converto a atual realidade, porém sem nunca permitir que meu coração se converta. Ele é um bravo guerreiro, um coração valente, um coração de estudante, como certa vez alguém escreveu…

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