Dizem que a bola tem orelha. Mas hoje ela não ouve nada. A torcida está muda. A bola, por sua vez, prefere ficar estática. Nada de responder ao chute, nada de voar vento afora. A bola está órfã, viúva, abandonada. O rei virou anjo, criou asas e foi atrás de Garrincha, buscando outros dribles. A bola mal-humorada se recusa a sair do meio de campo. Jaz ali, e não quer falar com ninguém.
Com cara de poucos amigos, encismada, acabrunhada, prefere criar raízes. Não espera mais nada, de ninguém. Juntos, ela e Pelé uniformizaram idiomas, desbravaram orientes e ocidentes, pararam uma guerra até. A bola e Pelé tinham uma relação simbiótica e esse tipo de vida não se acaba assim. Foi ela, bola, pega de surpresa. Como assim? Ele foi embora? Não acredito! Essa é mais uma fake news de um país cansado de mentiras. Ele, Pelé, combinou com a bola que estariam sempre juntos e assim deve ser. A bola não se conforma, se sentiu traída. Ainda pensa em como digerir tudo isso, afinal é uma bola, basta deixar rolar. A despeito do que pensa, é tempo de imaginar que o tempo tira de nós o que mais precioso temos. Tira nossos sonhos, se permitimos. Tira nossas lembranças, se enfraquecemos.
O tempo é inexorável e transforma nossos ídolos em estátuas, espalhadas em praças que nunca iremos conhecer. Mas se, por um lado, é ácido, por outro é sábio. Ele nos avisa que tudo termina, mesmo quando não tem que terminar. E nos dá, ainda, alternativas. Nos remete às memórias a nos lembrar que às vezes é melhor esquecer. Mas não é o caso. O que é bom sempre continua, mesmo quando acaba. Muda de nome ou de rosto, mas o gosto é o mesmo! Gosto de saudade. Hoje é um dia especial, devemos todos acionar nosso juízo nas lembranças e colocar na estante do sentimento uma pessoa muito especial. O ídolo, o gênio, o melhor de todos, dentre todos no mundo todo. Isso mesmo, Pelé. Aquele cara que via nos pôsteres na parede e sentia como meu amigo. Ele agora me diz adeus e acena com um pulso frágil a demonstrar que a vida, à despeito das somas, às vezes subtrai. Me ajeito na cadeira a imaginar como será o futebol de agora em diante. O melhor de todos foi embora, o que fazer? Como forjar um novo ídolo em tão pouco tempo? Nosso país sobreviverá a esse ausência? Mas a bola, ela continua ali em sua mesmice, emburrada, mas lúcida. Ela ouviu dizer, com as orelhas que tem, que tudo que um jogador de futebol fez ou tentou fazer, Pelé já tinha feito. Mas, ainda assim, ela permaneceu silente, afinal, pois sempre teve a certeza que o rei Pelé é eterno!
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