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Uma noite ruim…

Rosangela Maluf

Cochilando em frente a TV, com os dois gatos ao lado e a vasilha com pipoca perfumando toda a sala, dona Nena resolvera ir pra cama.

Desligou a TV, recolheu a tigelinha com os restos de pipoca. Chamou pelo nome os dois bichanos, fechou a porta e dirigiu-se ao quarto. Colocou seu pijaminhade manga comprida. Foi ao banheiro, sempre acompanhada pelos bichanos, mas não se demorou. Fez xixi, escovou os dentes e passou com toda calma, o creme no rosto.

Preparou sua cama, separou travesseiros & almofadas. Colocou os gatos em suas caminhas. Fechou a porta do quarto e se perguntou se havia verificado a porta da rua. Achou que sim, ela pensou.  Apagou a luz deixando aceso apenas oabajour em cima da mesinha de cabeceira. Iria ainda ler um pouco até que o sono retornasse.

O final de domingo estava mais silencioso que o normal. Nem mesmo o vizinho ao lado, que sempre colocava o volume da TV no máximo. Assim ela poderia ler em paz.

Um barulho estranho ela ouviu.

Fechou o livro e prestou toda atenção. Poderia ser uma porta sendo aberta? Não. Outra vez o mesmo barulho.  Vozes. Duas pessoas falando baixinho. No andar de cima? Talvez.

Passos? Não pode ser. Muito próximo o barulho. E a porta da sala, será que havia mesmo sido fechada? As vozes continuaram, meio ao longe. Agora pareciam paradas, no corredor. Bem baixinho falavam. Parecia que se dirigiam à cozinha. Pelo espaço, embaixo da porta, percebeu uma luz acesa. A luz da cozinha?

Antes de ter certeza se era mesmo alguém em casa, ela achou melhor se esconder. Onde? Em baixo da cama, era o único local. Antes, jogou uma colcha por sobre a cama, ajeitou duas almofadas e se jogou ao chão. Queria dar a impressão de que não havia ninguém ali. Arrastou-se lentamente até que ficasse escondida, sob a cama.

Continuou olhando por baixo da porta e viu a claridade das luzes. Respirou fundo. Sentia muito medo. O coração disparado parecia fazer barulho. Ela não se conteve, começou a rezar baixinho. Certamente deixara a porta da sala sem trancarcomo deveria. Será, meudeus? Já não era a primeira vez que isto acontecia. Seu filho sempre lhe dizia que ela devia ter todo cuidado. Certificar-se de que tudo, rigorosamente tudo, estava fechado. Tudo bem trancado, antes de pensar em se deitar – ele dizia sempre.

Silêncio total, apenas o coração que quase lhe saia pela boca e fazia sim, um barulho enorme.

Dona Nena tentava respirar. Inspira, expira.

Não dava certo, não conseguia respirar normalmente e o malestar só se acentuava. O barulho de passos pelo corredor…recomeçara. Aflita, ela se encolheu como podia, naquele pequeno espaço sob a cama.

As vozes pareciam mais próximas.

As sombras eram vistas pelo pequeno espaço entre a porta e o chão.

Uma faixinha de luz que se movia, com certeza alguém que andava pra lá e pra cá.

Meu Deus, como é possível? Me ajuda, Senhor. Nunca mais vou deixar a porta aberta. Vou verificar todas as noites. Ah, esta minha cabeça. Bem que meu filho me fala sempre, mas ando muito sem atenção. Faço tudo sem pensar. Não observo o que estou fazendo. Não posso ser assim. Não posso continuar assim. Me ajuda, Senhor.

As vozes pareciam ser apenas duas. Aproximavam-se da porta do quarto. Tentaram mexer na maçaneta. Não estava trancada. O filho dizia sempre pra que ela não trancasse a porta. E se acontecesse alguma coisa? Como chegaria o socorro até ela?

Suando em bicas, dona Nena se encolheu como pode.

E se entrassem no quarto?

Se não acreditassem na cama meio arrumada?

E se olhassem debaixo da cama?

E se a vissem lá, toda encolhidinha, completamente paralisada pelo medo. Dona Nena queria ver o que se passava, mas não ousava deixar os olhos abertos.

Pensou no que poderia lhe acontecer. Dois estranhos, provavelmente assaltantes, quiçá assassinos. Ó, Cristo!

Oh, meudeus, me ajuda. O que eles podem querer de mim? Não tenho dinheiro, nem jóias, nada de valor. Só o relógio que foi da minha mãe. Entrego ele, sem pensar duas vezes. E os dois gatos… elenão iam querer os gatos. A TV? É nova, ganhei faz pouco tempo…O que podem querer de uma velhinha de quase oitenta anos?

A porta se abriu. Dona Nena fechou os olhos já cheios de lágrima, mas não podia chorar, de jeito nenhum. Respirou fundo. Barulho de passos no corredor e também no quarto. Queria ouvir o que ele diziam, mas não conseguia. Medo. Muito medo. Dor de cabeça. Tum Tum Tum nos ouvidos. E agora, meudeus!

Por mais que tentasse não conseguia ouvir o que diziam.

Eles cochichavam. E se eles se abaixassem e a vissem ali, debaixo da cama? Começou a chorar, em silêncio. Sentia os pés gelados. As mãos transpiravam. Assustada sentiu os pés sendo amarrados. Como assim? Continuou quieta. Já morria um pouco mais. Sentia as cordas em suas perninhas magrelas. Abriu os olhos, mas só via sombras, nada mais.

Suas mãos lhe foram puxadas. Ela não ousava gritar. Reclamar também não adiantaria. Sentiu as cordas em volta dos pulsos magros. Não abria os olhos, mesmo que quisesse. Sentiu que o ar lhe faltava. Estava certa de que estava morrendo. Quem cuidaria dos gatos? Quem lhe encontraria sem vida? Quem cuidaria dos seus vasos? Quem lhe trocaria a roupa? Quem a prepararia num caixão decente?

O ar lhe faltava mesmo.

Não conseguia respirar.

Abriu os olhos, jogou pro lado o livro que estava sobre o seu rosto e acordou. Os óculos tortos no meio da testa. As mãos suadas apertavam a colcha sobre a cama. Um dos gatos no meio das suas pernas.

Silêncio. Nenhum assaltante. Nenhum assassino.

Tudo normal. Demorou a realizar o que acontecera.

Voltou a respirar, ainda que fora do ritmo. Sentou-se na cama, encostada na cabeceira, passou as mãos pelos cabelos. Pelo rosto. Pelas pernas. Jesusamado, ela falou em voz baixa. Jesusamado, repetiu.

Que noite ruim. E que pesadelo, ainda pior!

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