Categories: Sem categoria

Não se nega um pedido de um amigo

Peter Rossi

A coragem não era o maior dos atributos de Tommy. Não que fosse covarde, longe disso. Mas, se pudesse evitar o confronto, ele tudo faria para que as coisas acontecessem assim. Vejo a conduta até como sábia. Manter a integridade de sua consciência não torna obrigatório o embate. O que você pensa, só a si interessa.

Enfim, Tommy era uma pessoa comum e essa avaliação prévia é apenas pontual, de modo a delimitar a situação do ocorrido.

Naquela cidade, como, aliás, em qualquer outra, nascer e morrer faziam parte do cotidiano e, como tais, fértil assunto para as alcoviteiras de plantão. No modorrento passar do dia, mãos cansadas de tanto tricô, a melhor solução para passar o tempo era conspirar a vida alheia.

E como nem sempre os acontecimentos – que naquela época andavam com o freio puxado – emergiam, era absolutamente necessário que fossem fomentados. Assim, a versão se antecipava ao fato. A conversa espraiava longe da verdade. Não por qualquer maledicência explícita, mas sim em razão do vácuo das informações.

Essa premissa explica a costumeira prática do assassinato alheio. Isso mesmo, acontecia às carradas.

– Marieta, você soube do ocorrido? Tiquim da D. Joana bateu as botas, foi dessa para melhor. Coitado do menino, tão jovem né?

Tiquim tinha sido operado de uma apendicite e naquele momento recebia do Dr. Borges a informação de que teria alta no dia seguinte.

Mas a pressa, sempre inimiga da perfeição, cuidou de tentar rasgar o prontuário do paciente. Dr. Borges que explicasse depois como ele ressuscitou.

Nazinha era dessas, mais que saber quem morreu, ela adorava matar, ainda que seja nas conversas com as amigas. A cada semana mandava um infeliz pra algum lugar – céu ou inferno.

Mulher simpática, avó zelosa, tinha ela todo o tempo do mundo para costurar infortúnios da vida alheia. Bastava alguém tossir e estava com tuberculose, doença que assustava por demais naquela época. Se tivesse alguma dor na coluna, pobre coitado, o reumatismo já lhe alcançara.

Enfim, a morte rondava todas as conversas e se de fato fossem elas verdadeiras, vários outros cemitérios seriam necessários. A cidade só tinha uma funerária e, coincidência ou não, era sempre a última a saber.

Numa dessas Nazinha, num final de tarde, após receber a visita do filho, conta a Tommy que Armando, seu colega de empresa, havia morrido.

– Como assim mãe, ainda ontem estive com ele. Estava lépido e fagueiro. Foi acidente?

– Meu filho, ainda não sei como aconteceu, mas que morreu, morreu. É uma pena, vai ver já estava doente e não contou pra ninguém.

– Pouco provável mãe, aos domingos ele sempre batia uma bola no Clube das Quintas e, via de regra, era sempre o melhor em campo, apesar de fumar muito. Não acredito que estivesse doente. Bom, vou indo agora, assim que chegar em casa ligo pra empresa e me acerco dos detalhes. Depois te telefono pra falar quando e onde será o velório.

– Fique com Deus, meu filho. Aguardo suas informações.

Voltando de Bicalho para Nova Lima, Tommy pensava o tempo inteiro no amigo. Se lembrou das partidas de sinuca disputadas. Armando era um forte adversário, porém sempre leal. De poucas palavras, até porque seus lábios sempre estavam ocupados com o cigarro. Tommy também era um fumante inveterado. Dois maços por dia!

Assim que chegou a Nova Lima, guardou o velho carro na garagem e saiu para uma caminhada no Rego Grande. Gostava de andar por ali para esfriar a cabeça e colocar os pensamentos em dia. A estradinha era de terra e mal iluminada, mas a lua se encarregava de mostrar o caminho.

Tommy caminhava a passos lerdos, fazendo hora para voltar para casa, até porque sabia que iria ouvir cobras e lagartos, dado o adiantado da hora.

Àquela altura já estava perto da “Peneira”, uma parte do Rego em que há um cruzamento com a rua que subia para o clube. Viu de longe um vulto, magro, esguio, vindo em sua direção. Não mudou a rota. Embora não conseguisse identificar, naquela distância, de quem se tratava, bem sabia que todos eram conhecidos naquela pequena cidade.

A pessoa chegou a poucos passos de Tommy, e com um sorriso no rosto o cumprimentou:

– Boa noite Tommy, ainda bem que te encontrei. Estou louco para fumar e não tenho mais cigarros. Fui na bitaca ali embaixo e já estava fechada. Arranja um cigarro pra mim, por favor.

Bitaca, na minha cidade, era um boteco, um bar pequenino que, além de bebida e cigarros, vendia também alguns enlatados.

Tommy, num ato instintivo levou a mão ao bolso da camisa para pegar o maço de cigarros, quando se deu conta de quem lhe fitava – era Armando!

Como assim, Armando estava morto! Sua mãe acabara de contar. Ele girou os pés no calcanhar e saiu em desabalada carreira.

Alguns metros à frente, se lembrou do pedido do amigo e só fez jogar o maço de cigarros, sem olhar para trás, afinal não poderia negar um pedido do companheiro de sinuca.

*
Curta: Facebook / Instagram
Blogueiro

View Comments

Share
Published by
Blogueiro

Recent Posts

Dezembriar

Silvia Ribeiro Então é dezembro. Hora de pegar a caderneta e fazer as contas. Será…

13 minutos ago

Feliz Natal

Mário Sérgio Todos os preparativos, naquele sábado, pareciam exigir mais concentração de esforço. Afinal, havia…

18 horas ago

Natal? Gosto não!

Rosangela Maluf Gostei sim, quando era ainda criança e a magia das festas natalinas me…

1 dia ago

Natal com Gil Brother

Tadeu Duarte tadeu.ufmg@gmail.com Com a proximidade do Natal e festas de fim de ano, já…

2 dias ago

Cores II

Peter Rossi Me pego, por curiosidade pura, pensando como as cores influenciam a nossa vida.…

2 dias ago

Corrida contra o tempo em Luxemburgo

Wander Aguiar Finalizando minha aventura pelo Caminho de Santiago, decidi parar em Luxemburgo antes de…

3 dias ago