Daniela Piroli Cabral
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(Texto original publicado em 04 de Novembro de 2020. Naquela data, contávamos 160 mil mortos na pandemia. Hoje são mais 688 mil brasileiros mortos pela da Covid-19. Em defesa da preservação da história e da memória de cada um deles).
Minha avó paterna se foi há 11 anos. Dona Lourdes foi uma das referências afetivas na minha vida. Hoje as memórias nos aproximam, eu e ela, no momento presente. E a saudade, às vezes, ainda dói.
Na casa dela se podia fazer de tudo mesmo. Era lá que eu passava muitas das minhas tardes e finais de semana. Entre a garagem, o quintal e a cozinha daquela moradia simples no bairro Funcionários. E ali não havia fome, nem de comida, nem de afeto. Sempre saía um ovinho mexido ou uma omelete de cebola no capricho. Sempre havia amor e um olhar atento.
Todas as sextas-feiras, ela me buscava na escola, era dia de lanche na lanchonete da esquina: coxinha de frango com catupiry e coca-cola. De vez em quando, de sobremesa, ainda era permitido rolinhos de chocolate “Pan” em forma de cigarro. Eram tempos em que o politicamente correto nos permitia esses deslizes. Não sei como minha geração sobreviveu a essa apologia ao tabagismo.
Lembro do quanto gostava de me deitar na sua barriga, logo após o almoço, para escutar os ruídos da sua digestão. E como aquele estômago conversava. Amava quando ela fazia massagem nos meus pés, enfiando os seus dedos besuntados de creme entre as minhas falanges. Sentia cócegas, dor, carinho, cuidado, tudo ao mesmo tempo. E não se podia parar de fazer aquilo.
Ela partiu num dia 03 de novembro. O cemitério estava todo florido. Tinha sido finados no dia anterior. E as lindas flores a acolheram com toda a beleza que ela merecia. Tive aquela imagens das flores espalhadas ao redor das lápides por muito tempo como um conforto. Imaginei o céu a recebê-la como reflexo daquela bela despedida.
Apeguei-me também à ideia de que fora um privilégio poder ter sido sua neta por quase trinta anos. Esse pensamento me ajudou a enfrentar a dor da perda. Pensei, por muito tempo, que não haveria dia melhor no mundo para morrer do que no 03 de novembro. Tentei até negociar com o cosmos essa cláusula no meu contrato de vida.
Brincadeiras à parte, é impossível não lembrar dela neste dia de finados, em que escrevo essa coluna. Aprendi que as avós são eternas. É impossível também não lembrar dos mais de 160 mil que morreram pela pandemia da Covid-19 aqui no Brasil, deixando um rastro de luto em massa, memórias de tristeza e dor carente de ressignificação. Diante dos lutos “abreviados”, esse dia de finados vai deixar um sabor mais amargo na boca da gente. Que sejamos capazes de honrar todas essas vidas.
Na semana passada estive no Maranhão e conheci uma senhora que havia perdido o filho, adulto, de forma abrupta. Falamos sobre as memórias do rapaz, de quem ele era, o que fazia, do vazio que deixou. Falamos da saudade e da importância de se deixar o tempo agir no sentido de “assentar” as coisas diante da perda. E ela, na sua simplicidade, me olha com os olhos mareados: “Tem horas que dói mais do que assenta.”
Sábia a dor daquela mulher. A dor por aqueles que amamos nunca deixa de doer. Elas são eternas, assim como são as avós.
Referências:
Dedico este texto à minha querida avó Maria de Lourdes Freire Cabral e à Dona Regina, moradora de São Luís-MA, dona da receita do melhor bolinho de caranguejo e de uma das dores mais doídas que já escutei.
Abaixo, sugiro dois filmes imperdíveis que abordam a morte e o processo de luto:
- Viva, a vida é uma festa – https://www.youtube.com/watch?v=voMzNzP1i_c&list=PL8lQ3X4ZcThK4XwpecqLrmgveexKUXuG2
- Capitão fantástico – https://www.youtube.com/watch?v=ScCFKDlVt6w
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