O final da manhã trazia consigo um sol escaldante que meu boné não conseguia amenizar. Ao contrário, parecia que o material sintético do qual era feito só fazia aumentar a temperatura. Estava eu de carona com amigos jipeiros.
Nunca tive um jipe, mas sempre achei interessante a proposta de, aos finais de semana, homens adultos e com a vida já consolidada montarem naquelas máquinas e sair sacolejando pelas estradas de terra das nossas Minas. Parando em restaurantes pequenos e bares do interior. Uma cerveja gelada acompanhada de uma linguiça com mandioca. A gente precisa mesmo de pouca coisa pra ser feliz, basta não se preocupar apenas com a razão das coisas e sorvê-las com o prazer que possuem.
Sentado no banco do carona, me lembrava da música do Toninho Horta: Manuel, o audaz, em que conta as peripécias do seu jipe, ou jeep, se preferirem os puristas.
Afrânio já quase alcançara os sessenta o que fazia seu pé direito se acovardar no acelerador. Mesmo assim, o piso irregular e os saltos do jipe nos permitiam pensar que estávamos em altíssima velocidade.
Após uma subida daquelas em que não se vê o final, só o céu, chegamos ao topo de um morro, e um planalto nos permitia desfrutar de uma paisagem estonteante, os mares de Minas, as montanhas, uma ajeitada ao lado da outra, entremeadas por rios capilares e estradas de chão. Fechei os olhos e pensei em Guimarães Rosa, como queria, naquele momento, ter a sua capacidade de escrita. Eram tantas as sensações na minha alma, mas certamente não conseguiria trazê-las para o papel.
Quem dera pudesse me encontrar com Guimarães, trocar um dedo de prosa e pedir que ele transformasse em história o meu sentimento.
Estavam lá algumas motos e outros jipes. Seguimos em linha reta até o encontro de alguns pequizeiros. Numa virada, uma pequena venda de parede caiada e telhas antigas despontava.
Descemos e Afrânio, após voltar do banheiro, deu um abraço apertado no dono do lugar – seu Malaquias, e pediu uma cerveja gelada.
Sentamos em frente aquela velha venda, num chão de terra batida, isso após descer dois ou três degraus de cimento com vermelhão. Aconchegados sobre toscos bancos, ao redor de uma mesa que teimava em escorregar a cada vez que apoiávamos nossos cotovelos.
A tarde passava e, vez ou outra, seu Malaquias, ao trazer um tira-gosto, sentava conosco a falar da vida do lugar.
Em certo momento subi os degraus e ao passar em frente ao balcão da venda, um móvel de madeira, com a frente totalmente fechada em sua metade, e na outra vidros encaixados a formar uma vitrine.
Quase não acreditei quando vi algumas guloseimas ali. Algumas, não! Uma, em especial! Perfeitamente arranjadas num prato de alumínio, umas sobre as outras, lá estavam as Marias-moles.
De imediato mergulhei na minha infância, acariciando com minha saudade aquela iguaria tão especial. O sabor do coco veio ao meu encontro e por alguns segundos salivei pensando em minha vida de menino.
É incrível como nossas lembranças nos acompanham, seja de avião ou de jipe pelas entranhas das montanhas de Minas Gerais. Não nos deixam nunca. São como hemácias e borbulhar em nosso íntimo, por entre nossas veias. Acho até que sem lembranças o oco não se sustenta. De que adiantaria não ter nada para lembrar?
Essa é uma questão a merecer uma avaliação profunda – somos o que somos em razão de nossas lembranças. São elas a sustentar nossas paredes, a acalentar nossos medos e a envolver de esperança os nossos sonos.
Continuava ali a olhar o doce. Minha vontade era a de comer tudo que estava naquele prato. Mas resisti. Pedi ao seu Malaquias que me mostrasse a Maria-mole e quando ele retirou o prato da vitrine, o cheio doce me alcançou. Fechei os olhos como a centralizar todos os meus sentidos num só. O cheiro da Maria-mole!
A fita foi rebobinada e o gosto invadiu minha boca. Era eu menino, de calças curtas e kichute, descendo a ladeira até o boteco do seu Joaquim, na minha cidade natal. Ali, num baleiro, me esperavam Marias-moles brancas, de coco queimado, meio amareladas e até uma cor-de-rosa. A moeda maior dava pra comprar duas unidades. A primeira era devorada com intensidade tamanha que quase não conseguia respirar. A boca não se fechava e se alguém viesse nos cumprimentar era a maior vergonha. No lugar dos dentes pequenos, aquela massa a cobrir tudo.
A segunda Maria-mole, não! Ao invés de devorada como a primeira, era saboreada. A gente passava a língua naqueles pedacinhos de coco ralado e dava pequenas mordidas, torcendo pro doce nunca acabar.
Acordei com Afrânio batendo no meu ombro e perguntando se estava gostando da jornada. Logo disse que sim, mas nada falei sobre meu sonho com a Maria-mole.
Não comi nenhuma, até para não desmanchar o sabor que invadia meu peito. Estava bom assim. Peguei o celular e tirei uma foto, só isso. Voltei para a mesa e vi que meu amigo já fechara a conta. Era hora de voltar, o jipe não tinha faróis e a noite não tardaria.
Sentado no banco ao lado de Afrânio não economizei elogios ao passeio. De fato, estava entusiasmado. Naquele momento, voltava a minha mente a música do Toninho Horta: “iremos tentar, vamos aprender, vamos lá”.
Já em casa, pensando em tudo aquilo, meu telefone toca.
– Oi pai, tentei falar com você o dia inteiro, estava preocupado.
– Desculpa filho, saí com Afrânio e fomos por umas estradas de terra, não devia existir sinal de celular, mas estou bem, fique tranquilo. Aliás, estou muito feliz!
– Uai, o que é que houve?
– Decidi que vou comprar um jipe. É uma delícia passear pelo interior, de cidade em cidade. Se quiser, pode vir comigo.
– Que ideia mais maluca, pai. Mas se te faz feliz vai nessa, vou te ajudar a olhar.
– Outra coisa, filho, além de passear de jipe, descobri hoje que nunca tinha esquecido o sabor de Maria-mole …
– Hã?
A essa altura, meu filho percebeu que alguma coisa especial tinha acontecido e nada retrucou. Me mandou um beijo e disse que me amava.
Eu, com o celular sobre o peito, fechei os olhos, a espera daquele sabor. Passei a língua sobre os lábios e lá estava ele. Me lembro que antes de adormecer voltei a divagar sobre as grandes pequenas coisas da vida. Do pouco que nos bastava pra ser feliz.
Acho até que sonhei com Maria-mole, pois acordei lambuzado de felicidade!
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Muito bonito o texto e nos faz viajar pelo interior de nossa alma. Existe um mundo dentro de nós e o universo está lá fora, esperando nossa imersão espiritual. Sejamos audazes!!!
Maravilha tudo de bom,já fiz este passeios com a turma de Jipeiros Pioneiros da Montanha, dos Barreirenses como também tive um jipe!! Muitas lembranças deu saudades!!!
Como é bom fazer coisas simples !! Nos dá uma saudade danada no coração da gente.Agora me deu vontade de comer Maria -Mole,as brancas,rosas, queimadas.....hum que delicia .
maravilha de texto! Muito visual . Senti o gosto da maria mole. kkkkk obrigada e parabéns!